terça-feira, 1 de abril de 2014

Dia um.

Nova contagem.


Este blogue termina aqui. Hoje. Oitenta e cinco dias depois de ter começado. Num dia que não é só de mentiras e que é o primeiro da mais recente etapa.

Obrigada pela companhia. Obrigada pela viagem. Obrigada a quem o leu todos os dias, a quem cá veio de vez em quando e a quem só cá esteve de passagem. Obrigada pelas palavras (em jeito de incentivo, desabafo, crítica ou sugestão).

E, acima de tudo, obrigada à primeira pessoa a quem falei dele, numa noite fria, na sala do Nimas. Quando, muito antes de ser um blogue, era apenas uma ideia. Talvez nunca tivesse passado daí se não fosse essa conversa. E talvez não tivesse seguido em frente se não fossem tantas outras.

Até breve.

:)

segunda-feira, 31 de março de 2014

Dia oitenta e quatro.

Balanço.


Quando comecei este blogue, fi-lo porque gosto de escrever. E de trabalhar com escrita. Ora, quando surgem vagas para empregos relacionados com "texto", o mais habitual é pedirem-nos exemplos. E eu, antes de mais, queria ter aqui isso mesmo  um exemplo. Uma prova de que escrevo e de que, à falta de mais e melhor, pelo menos sei pôr vírgulas no sítio. E uma prova rápida de enviar, de mostrar, de ver.

E tudo isto também começou porque senti necessidade de me "mostrar". Não sou assim tão extrovertida, não gosto de holofotes e acho-me tudo menos brilhante. Mas dizia-me a experiência (a minha e a de quem me rodeia) que ficar parada, limitando-me a enviar currículos, não me havia de levar muito longe. Era preciso mais. Era preciso chegar mais além. O blogue pareceu-me um bom companheiro para essa viagem e o Facebook só poderia ser, claro, o transporte ideal. Não fosse ele (e, através dele, a SIC...) e estas escritas não teriam mil e duzentos seguidores. Não fosse ele e boa parte das pessoas que me conhecem nem sequer saberia que eu estava desempregada (sendo que muitas delas trabalham na minha área). Não fosse ele e eu nunca teria chegado a saber de certas vagas. (Por outro lado, não fosse ele e o estranho mundo das entrevistas e propostas "obscuras" ter-me-ia passado ao lado.)

Foi um longo caminho. Não tão longo assim, em termos de tempo, quando comparado com outros. Mas longo  é-o sempre quando não temos emprego, quando não sabemos o que virá a seguir, nem quando virá, nem como. Um caminho feito de oitenta e quatro dias aqui, e de mais alguns antes disto. E feito com muita gente à volta, desde os que me são mais próximos àqueles que nem conheço mas que partilharam algo comigo: em leituras, em moderníssimos likes, em comentários e em mails. Pediram-me conselhos que não soube dar (quem sou eu para tal coisa, aliás?), partilharam experiências, alegrias e frustrações "só porque sim", ficaram felizes quando souberam que a minha vida mudou, disseram que iam ter saudades de ler algo novo aqui todos os dias. E, a todas estas pessoas, eu nunca saberei o que dizer.

Escrever obrigou-me a pensar (mais ainda do que aquilo que já é normal em mim  quem me conhece sabe que sou dada a pensar demais). Houve dias fáceis e difíceis  para o ânimo e para a escrita. Dias em que não faltava assunto e dias em que não sabia o que escrever. (Hoje sei que houve duas ou três coisas que ficaram por dizer aqui, mas agora o tempo delas passou.) Dias em que tinha muito tempo e outros em que não tinha tempo nenhum. Dias de sol, de chuva, de constipação, de inflamação nas costelas, de sorrisos e de lágrimas, de conquistas e de medos, de falta de mimo e de tanto mimo que nem me apetecia interrompê-lo com um computador. Dias sim e dias não. Mas nunca me esqueci. E só faltei uma vez à chamada  piquei o ponto mas fui embora a seguir, porque nesse dia não havia escrita possível.

Referi-me a este blogue há uns dias como "uma empreitada". E foi isso mesmo. Uma empreitada. Das boas. Este foi o meu projecto.

E acho que vou ter saudades dele.

Começo amanhã.

domingo, 30 de março de 2014

Dia oitenta e três.

O meu novo emprego.


O meu novo emprego não é em rádio, como todos os que tive até agora. Não vou trabalhar com a voz, nem com som, nem num estúdio.

Vou trabalhar com escrita. Com notícias. Com internet. Com suplementos, portais, sites, conteúdos. Alguma imagem. Muito texto.

Vou produzir, que é coisa que já aprendi a fazer há uns anos. Mas há sempre espaço para aprender mais – e vou aprender muito, porque num novo emprego aprende-se sempre e porque aqui o tema é muito específico (e novo para mim).

E vou trabalhar muito, também. Muito, muito. Mais do que um desafio, à minha frente estão dois: o de um novo emprego e o de conseguir gerir o tempo. Entre aquele que o trabalho irá absorver e aquele que restará, só me resta organizar-me, fazer figas, rezar para que não doa muito e seguir em frente.

sábado, 29 de março de 2014

Dia oitenta e dois.

O último fim-de-semana.


O último fim-de-semana já nem sequer é digno desse nome. Só lho dou porque é o que vem no calendário. O último fim-de-semana serve para pensar no que aí vem, preparar material e estratégias e arrumar ideias. Ocorre-nos aquilo que o tempo sem emprego nos deu e nos tirou, reflecte-se sobre o que vem a seguir, fazem-se balanços dos últimos tempos.

No fundo, são dois dias para fechar um ciclo e abrir portas a mudanças e novidades.

Dois dias entre um piquinho de nostalgia e outro de ansiedade. E com aquele frio na barriga próprio de quando nos aproximamos de algo novo e desconhecido.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Dia oitenta e um.

Sobre aquilo que somos, afinal.


A pergunta é habitual. Surge de várias formas. A aflitiva é uma das mais comuns: "o que é que tu és?".

Afinal, o que é que nós somos? Somos engenheiros porque nos licenciámos em engenharia? Somos jornalistas porque tirámos um curso de jornalismo? Não sei. Se estudámos enfermagem e nunca trabalhámos como enfermeiros, o que é que somos? A teoria indica uma resposta mas a prática sugere outra.

Quando já deixámos vários trabalhos para trás, todos diferentes, qual deles é que somos? Aquele de que gostámos mais? Aquele que fizemos mais tempo? Aquele em que mais aprendemos? Aquele que era na nossa área? E se não houve nenhum na nossa área? E se houve dois ou três? E se não gostámos de nenhum? E se nos vemos como sendo várias daquelas profissões?

E se não nos vemos em nenhuma delas? Se, no fundo, achamos que somos algo... que ainda não fomos?

E quando já fomos algo que entretanto deixámos de ser? É essa a nossa profissão? Podemos querer voltar a tê-la ou não. O que é que se diz? Varia consoante quem nos faz a pergunta? Se calhar, para a família dizemos ser e para o potencial empregador apostamos no b. Ou no c. Depende. E o ponto de vista também varia segundo quem nos conhece, porque uns cruzaram-se connosco quando éramos e outros trabalharam na secretária à nossa frente quando fomos y.

Somos a primeira profissão que nos ocorre, a última que tivemos ou aquela a que sempre aspirámos? Somos aquilo que gostamos realmente de ser ou somos aquilo que a vida nos foi impondo?

Para a pergunta "o que é que tu fazes?", a resposta é fácil. Mas, se a versão apresentada for "o que é que tu és?", a história é outra. E, se neste momento alguém me perguntar o que é que eu sou, por incrível que pareça eu não sei responder. Sei identificar uma área. E gostos. E tudo o que já fui, oficialmente ou só porque sim. Sei o que ainda gostaria de ser. Sei o que serei a partir de dia 1.

Mas aquilo que sou realmente, acima de passado, presente ou futuro, é coisa que me escapa.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Dia oitenta.

O diário da C..


A C. é minha amiga. Partilhamos dias bons e maus com a mesma facilidade. Não há conquista que fique por contar nem medo que fique por assumir. E há dias, tantos, em que ninguém percebe os nossos dramas (pequenos ou grandes) tão bem quanto a outra. A S. e a C. são uma dupla inseparável para risos, lágrimas e um sem-fim de detalhes e picuinhices só delas.

Só nossas.

Eu e a C. ficámos sem emprego no mesmo dia. Essa é só mais uma luta partilhada. Estamos em fases da vida um pouco diferentes mas as esperanças e as dores de uma e de outra são idênticas, apenas com uma nuance aqui e outra ali.

Hoje a C. mandou-me uma mensagem. E li-nos ali: as lutas das duas, as conquistas que deixámos para trás, os medos que nos unem, as eternas expectativas e a esperança que temos de que a vida da outra corra, pelo menos, tão bem quanto a nossa. Temos sempre esta vontade de mudar o mundo por quem nos é mais querido. Nisso, e em muito mais, a vontade da C. e a minha são iguais.

Por tudo isto, o que ela escreveu tocou-me. Profundamente.

"Querido Diário, 
Ontem enviei um CV para um call center. Explicar-te bem o que senti nesse momento.. é quase como conseguir ganhar o Euromilhões: impossível.
Perceber que o desespero nos pode levar a voltar aos primeiros sítios onde se trabalhou para ganhar trocos. Agora a história é outra e leva-nos ao querer ganhar um ordenado, nem que seja à lei do agarrar a primeira coisa que se nos apareça. 
Sinto-me meio estranha, injustiçada e pequena.
Até amanhã*"

As lutas da C. serão sempre as minhas. Não só por tantas vezes serem iguais, mas também porque, sendo dela, são minhas também, de certa forma. E lendo estas palavras consigo ver muito além delas. E perceber exactamente a sensação e os seus porquês.

Eu e C. vimos o futuro ao alcance das nossas mãos e das nossas vozes. Ou melhor: pensámos que o tínhamos visto. Ao primeiro vislumbre acreditámos muito nele. Ao segundo, já nem tanto  mas o pezinho que não fica no chão faz sempre, sempre das suas. E é aí que nos tiram o tapete. Quando pensamos que determinada fase da vida já ficou lá atrás, descemos vários degraus de um momento para o outro. Melhor: empurram-nos, nós tropeçamos e caímos pela escada. Por mais força que façamos, subir não está nas nossas mãos (nos nossos pés). E assim se volta ao primeiro degrau do primeiro lance.

Nada contra esse primeiro degrau. Mas nunca será fácil nem soará certo pisá-lo de novo.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Dia setenta e nove.

"Como é que conseguiste?"


Esta é uma das perguntas recorrentes, e eu percebo-a muito bem. Conseguir parece uma tarefa quase impossívele não é por ter conseguido que me passa a parecer mais fácil.

Havia tanto a dizer sobre isto. Sobre a habitual inutilidade de enviar currículos e candidaturas espontâneas só porque sim, sobre o muito que se tenta e o nada que se obtém, sobre as mil e uma respostas a anúncios que parecem não chegar a ninguém nem a lado nenhum, sobre o sem-fim de conversas que se têm com quem se conhece, na esperança de que alguém saiba de alguém que conheça alguém que precise de alguém.

No meu caso, foi mais ou menos isto que aconteceu. A empresa precisava de mais uma pessoa para apoiar a concretização de dois projectos. O dono fez perguntas, alguém lhe falou de mim e ele falou comigo. Eu podia ter recusado (e, por dois ou três motivos, isso esteve prestes a acontecer); ele podia não ter ficado convencido com as entrevistas que me fez e ter escolhido outra pessoa.

Mas escolheu-me a mim.

E foi assim que consegui. Não foi uma resposta a uma oferta de emprego nem uma candidatura espontânea. Não regressei a nenhum sítio onde já tenha trabalhado e até agora não conhecia nenhuma das pessoas com quem vou trabalhar. Houve uma necessidade de um lado, uma recomendação do outro e três ou quatro conversas que acabaram por correr bem.

Só isto. Nada mais.

(Até parece simples. Mas não é.)

terça-feira, 25 de março de 2014

Dia setenta e oito.

Mês novo, vida nova.


Sim. Vou voltar a trabalhar.

Foi por isso que ontem estive no centro de emprego: precisava de esclarecer algumas dúvidas. Porque, depois desta viagem de quase três meses (de certa forma, longa, mas, por outro lado, surpreendentemente curta), a contagem dos dias já não vai durar muito mais.

A história que aqui narro acaba num dia um  como aquele em que tudo isto começou.

Por agora, é só. Pormenores e balanços ficam para depois.

(Liguei ao meu irmão para lhe contar. "Vais deixar de escrever." Atendeu-me assim. É que nem perguntou; afirmou. Há quem nos conheça bem, de facto.)

segunda-feira, 24 de março de 2014

Dia setenta e sete.

No centro de emprego.


No centro de emprego havia trinta pessoas na fila à hora de abrir. E havia três pessoas a atender (as mesas são pelo menos treze). Mas um dos teclados não funcionava  por isso, só duas é que atendiam. Três, só vinte minutos depois.

No centro de emprego havia gente baralhada, gente feliz, gente com sono, gente com fome. Havia um trio de senhores de meia idade que falava muito alto. Havia uma senhora com barba. E havia um grupo que estava à espera para entrar numa formação, sub-dividido da forma mais comum: homens para um lado, mulheres para o outro. Eles tinham um ar simples e falavam do Benfica e do Barcelona; elas eram sofisticadas e falavam do formador.

Típico.

No meio de tanta gente (dos trinta que esperavam para ser atendidos), havia um senhor, com idade para ser meu avô, muito preocupado porque teve uma consulta, faltou "a qualquer coisa  nem sei a que foi", e temia ficar sem subsídio por causa disso. (Repito a parte mais importante: um senhor com idade para ser meu avô. Preocupado. Aflito. De lágrima no olho e de ar tão humilde quanto angustiado.)

Eu tinha a senha A11. Em quarenta minutos, tratei daquilo que tinha a tratar. Saí logo depois, ainda não eram dez da manhã.

Mas o tal senhor não saiu. E, tantas horas mais tarde, de todas estas imagens a única que não me larga é a dele. A do senhor com idade para ser meu avô. Vim embora e ele ainda ficou lá. Choroso. Assustado. Porque faltou "a qualquer coisa  nem sei a que foi". 

domingo, 23 de março de 2014

Dia setenta e seis.

Sobre os dias menos claros.


Nas alturas complicadas nós não somos bem nós. No geral ficamos iguais, mas há pormenores que mudam – e isso é mais do que suficiente para parecermos uma espécie de pessoa diferente. Ora, problemas de emprego equivalem a dias difíceis. E é certo e sabido que esses problemas arrastam outros (por culpa do nosso mau feitio ou apenas da nossa falta de paciência, fruto de tudo o que nos preocupa). Tornamo-nos irritáveis ou aborrecidos, ficamos angustiados e vulneráveis. As sensações vivem todas à flor da pele. A lágrima é mais fácil. A resposta impensada também. Cedemos aos impulsos. Fazemos o que podemos para evitar danos colaterais, esperando conseguir que os dias passem sem grandes estragos. Mas nem sempre conseguimos. Tudo incomoda, atinge, destrói. E, ao contrário, tudo marca, comove, cura. É tão fácil tocar-nos no cantinho mais sensível e ferir-nos. Ou sarar-nos.

sábado, 22 de março de 2014

Dia setenta e cinco.

Férias.


Tenho saudades das férias. E de ter férias. Não é que esteja cansada do trabalho, claro. Estou é cansada de o não ter. Sobretudo, cansada de não ter rotinas, horários, dias organizados. (Sim. Eu sou a maluquinha da sistematização da vida em geral e do trabalho em particular. Lamento o eventual transtorno.) E faz-me falta a dinâmica semana/fim-de-semana/dias livres/dias ocupados/trabalho/descanso.

Não  não trabalhar não é igual a ter férias. À primeira vista é capaz de ser parecido, mas na verdade não tem muito a ver. Férias forçadas não são propriamente semanas de descanso após meses de trabalho. Fazer planos para aquele pouco tempo de sossego não é igual a arranjar estratégias para ocupar tempo a mais. Dias sem fim não são dias contados.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Dia setenta e quatro.

Aquela altura em que a conversa chega ao ordenado.


Sim. Essa.

Quando até parece que a vida está a correr bem. O telefone toca e do outro lado eis alguém que viu o nosso currículo (o que, só por si, é quase o verdadeiro acontecimento desta história). Apresentações para cá, perguntas para lá, marca-se uma entrevista e achamos que é agora que tudo vai mudar. A vaga até é interessante, a função até é gira, o escritório até é perto, a empresa até é grande, o horário até é bom. O optimismo chega e instala-se logo. Por mais que não se queiram entusiasmos antes de tempo, já se vê ali quase ao alcance dos dedos um futuro belo e airoso. Chega o dia da entrevista e, mais calmos ou mais nervosos, aí vamos nós (após rezas, promessas, figas ou pedidos à avozinha que Deus tem). Tudo corre como planeado: chegamos cedo, a roupa assenta bem, a maquilhagem (momento menina) favorece-nos, não está calor nem frio. A senhora que nos recebe é simpática, a cadeira onde nos sentamos enquanto esperamos é confortável, a sala é bonita. Alguém nos chama  e é aí que o frenesim se instala ou desaparece por completo, conforme os casos. Entramos num gabinete acolhedor, bem decorado, e à nossa frente está a pessoa mais simpática e bem-disposta que alguma vez nos entrevistou. Conversa, brinca, interessa-se realmente por nós e vê-se perfeitamente que sabe do que fala. A entrevista corre bem. Sentimo-nos bons, competentes, brilhantes. Percebemos que acabámos de convencer quem temos à frente. Tudo lindo, perfeito, maravilhoso. Estamos plenamente confiantes em que a vaga será nossa  e de que o primeiro dia do próximo mês será também o primeiro do resto da nossa vida, num daqueles clichés habituais em quem se convence de que nada, a partir daquele instante, será como dantes.

"Quinhentos euros."

É aqui. É este o momento. Este. Acima de qualquer outro. Como somos muito bons e como a empresa precisa mesmo de alguém assim e como já se sabe que é um trabalho que parece feito para nós, a generosa chefia concede-nos quinhentos euros. A abordagem pode ter algumas nuances. Uns falam de trocos como se vivessem alheados do mundo, vendo ali uma fortuna; outros fazem-no em tom de quem lamenta, "mas agora é o que podemos pagar"; outros optam pela estratégia do "mas olhe que a partir daqui vai ser sempre a subir"; alguns são adeptos da técnica "mas é a fazer aquilo de que gosta, por isso..."; e também há os que vivem tão apaixonados por desafios que tentam partilhar a paixão connosco, garantindo-nos que, se mostrarmos que somos realmente bons, seremos recompensados por isso.

É claro que, depois daqueles "quinhentos euros", a nossa cabeça vai para muito longe e todo o discurso  que ainda prossegue parece de repente vago e sem sentido. Se formos pela paz, acenamos com a cabeça, balbuciamos qualquer coisa em jeito de circunstância, dizemos que sim, que vamos pensar, e pedimos a todos os santinhos que aquilo não demore muito, para podermos sair dali e chorar/praguejar/olhar para o vazio durante sete horas seguidas/comer porcarias (momento menina  parte dois).

É que ninguém merece. Por muitos motivos: talento, expectativas, necessidades, sonhos, e, acima de tudo, dignidade.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Dia setenta e três.

O regresso às cassetes.


Ao dia setenta e três desta história dediquei a tarde às tarefas domésticas e decidi fazê-lo com uma banda sonora diferente da habitual. Nem rádio, nem internet, nem pastas do computador. Nem CD, sequer.

Estou há horas com cassetes a tocar na aparelhagem. E isto não é um momento revivalista. Sou muito dada ao vintage e ao antigo e ao retro e a essas coisas todas, mas o bom desta tarde vai muito além disso.

Estas são cassetes gravadas há perto de quarenta anos. Tocam na perfeição. E o que algo tão simples me dá só prova que a música, de facto, vale muito para mim.

Tocam-me as canções. As minhas memórias e as de quem ouviu tudo isto noutra época. E toca-me esta subtil habilidade da tecnologia para trazer os anos 70 aqui à sala  nas recordações, nos sons, mas acima de tudo na simplicidade material de uma cassete gravada há bem mais de trinta anos por mãos que me eram queridas. As mãos já cá não estão, mas o lado simbólico de tudo o que tenho ouvido esta tarde está. E as cassetes ali, a tocarem. Tantos anos depois de alguém se ter dedicado a gravá-las, pedindo vinis aos amigos e anotando títulos, nomes, tempos.

Pôr estas cassetes a tocar é regressar à inocência de quando via o mundo à minha escala, e de quando as minhas músicas de infância eram músicas de crescidos.

O que é que isto tem a ver com desemprego? Não sei bem. Talvez não ter trabalho me tenha dado o tempo necessário para ouvir tudo com mais calma. Para poder parar e ouvir, só. Ouvir. E esquecer-me do resto para recordar aquilo que é mais importante, mais vital, mais intrínseco  sentimentos. Pelo que foi, pelo que ainda está por vir, pelas semelhanças que sem querer unem o passado ao presente como se fossem duas faces da mesma moeda (só que separadas por décadas).

E não deixa de ser curiosa a forma como a música me acompanhou sempre. Está em boa parte das minhas recordações mais nítidas e mais antigas e está nestes pedaços de passado que ficaram. Mas também está nos trabalhos que tive. E, entre todas as que já ouvi hoje, há uma que passei muitas vezes na rádio. E que acabou de tocar há pouco. Trinta e muitos anos depois de, nesta mesma sala, ser gravada.

Se calhar é por isso que este texto cabe aqui. Porque, antes de ficar sem emprego, tinha um trabalho de que gostava muito. E passava música. Música que ouvia desde sempre, e que hoje, sem querer, voltei a ouvir.

(E as coincidências roubam-me arrepios e sorrisos. Logo depois dessa que passei tantas vezes, está uma das primeiras músicas que cantei com duas mãos ao meu lado a tocarem guitarra. Outras duas  não as das cassetes.

E mãos essas tão certas. Tão especiais.)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Dia setenta e dois.

Uma manhã de balcões.


Uma manhã que começou na fila para a Loja do Cidadão. Se não estavam ali duzentas pessoas, poucas faltavam para a conta estar certa. (Claro que nove décimos dessas duzentas estavam ali para ir à Segurança Social. Tanto assim que uma hora depois de a Loja abrir já não havia senhas para o mais ruim dos estaminés que ali existem.)

Eu não fui à Segurança Social (se tivesse ido, talvez ainda lá estivesse). Fui, sim, renovar o Cartão de Cidadão. E agora segue-se um breve apontamento provocado, só pode, pelo mau feitio de quem não tem emprego: por mais que puxe pela cabeça não consigo perceber porque é que temos de pagar a renovação do dito. Eu nem nunca pedi a ninguém para o ter, quanto mais para que mo fizessem com prazo. (Este discurso de pessoa-que-acha-que-está-tudo-mal-e-que-é-uma-indecência-andarem-aí-a-tirar-nos-dinheiro-descaradamente é próprio de quem acorda cedo e sem trabalho, suponho. Ah, e de quem não gosta de andar por aí a semear dinheiro só porque sim, já agora.)

Tive mais sorte do que os fregueses da SS: hora e meia depois, saí. Impressões digitais registadas e assinatura gravada. (Já agora, sou só eu que não consigo que a assinatura, feita ali, fique compostinha?) Tendo em conta os meios dias, no mínimo, que se costumam perder nestes sítios, até que nem correu mal.

Paragem seguinte: a junta de freguesia, para a apresentação quinzenal. Ou, melhor dizendo, para a salvação do dia. A sério. Estou a pontos de perdoar o iluminado que inventou tal coisa. É inútil? É. É aborrecida? Sim. É incompreensível? Pois. Só que, quando julgamos que vamos ficar mais uma eternidadezinha à espera e acontece exactamente o contrário, a surpresa é tão boa que por momentos até nos reconcilia com o absurdo. É verdade que já as duas últimas edições tinham sido assim, mas uma pessoa vai sempre de pé atrás. Nunca fiando na ligeireza destes atendimentos. Seja como for, certo é que entre o chegar e o partir voltei a perder menos de cinco minutos. Notável, isto. Notável.

Dois balcões. Dois.

E mesmo assim consegui chegar a casa antes da hora de almoço.

terça-feira, 18 de março de 2014

Dia setenta e um.

Pessoas que insistem na ideia de que nós somos "isto" e de que fazemos "aquilo".


Parece do domínio quase comum que se uma pessoa tirou curso x só sabe fazer aquilo. Pior: só quer fazer aquilo. Se o não faz, é impensável que tenha mudado de ideias ou que tenha visto a formação apenas como um ponto de partida para outras coisas. Não. Quem tirou um curso e não trabalha nessa área não pode estar nessas condições de livre vontade. Certamente tem uma vida de permanente frustração. E, por mais que o suposto desgraçadinho tente explicar que não quer especificamente aquele trabalho, e que até é bem mais feliz a fazer outras coisas, poucos são os que dão ouvidos. Mas o caso não fica por aí: quando se parte do princípio de que aquela pessoa só não trabalha na "sua" área porque lhe faltam talento ou oportunidades, sempre que surge uma hipótese a marcação cerrada está garantida. Nas cabeças menos flexíveis, recorde-se, somos só  só  aquilo. Por isso, se parecemos pouco interessados naquela vaga que é tão-mas-tão-dentro-da-área, aí vêm o ar e o discurso desconfiados. "Então mas tu não és jornalista/designer/fisioterapeuta/contabilista/arquitecto?"

Sim. Na base, sim. Mas, felizmente, somos mais para além da base. (Nestes tempos, grave é se não o formos. Por mais estranho que pareça.) E o que queremos fazer dela é cá connosco. Por isso, pode acontecer que, havendo escolha, optemos pela outra vaga (sim, a que não tem nada a ver com a nossa formação). E que fujamos subtilmente, na medida das possibilidades, àquela que tem tudo a ver com o curso que tirámos. Por motivos que, mais uma vez, só nos dizem respeito a nós (e que partilharemos com quem quisermos, apenas).

Mas mal de nós se mesmo explicando isto com muito cuidadinho não nos fizermos entender.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Dia setenta.

A bolsa de valores da empregabilidade.


O nosso talento.
As nossas capacidades.
As nossas características uma por uma. As nossas características todas juntas.
As nossas forças e as nossas fraquezas.
Os nossos conhecimentos.

A nossa vontade.

O que nos diferencia dos demais.
Aquele talento especial que temos.

Os trabalhos que somos capazes de fazer.
As responsabilidades que assumimos ao tomar conta deles.

O espaço que ainda nos resta para crescer e aprender.
O que ainda não demos de nós. O que ainda não demos a empresa nenhuma.

Quanto é que vale isto tudo? Pedaço por pedaço ou no conjunto? Quanto é que valem todas aquelas coisas que nos "obrigam" a escrever no currículo e a destacar nas entrevistas?

Afinal quanto é que vale aquilo que somos?
Quanto é que valemos? Em futuro, em chances, em oportunidades, em confiança, em dinheiro. Em tudo.

Quanto?

domingo, 16 de março de 2014

Dia sessenta e nove.

As noites, o trabalho e a falta dele.


Quem é que já não acordou a meio da noite a pensar em trabalho? Ou na falta dele e na falta que ele faz?

Não sou muito de insónias nem de noites atribuladas ou mal dormidas, mas quando este tipo de fenómenos acontece a culpa é muitas vezes do emprego ou do desemprego (consoante as circunstâncias).

Quando trabalho é frequente sonhar com o que tenho para fazer. Acordo preocupada com prazos, com tempos, com tarefas. E fico ali umas quantas horas desperta, ou naquele estado estranho no qual não estamos propriamente a dormir mas em que também não estamos propriamente acordados, confusa, angustiada, presa a algo que não me deixa adormecer (e que em vez disso me provoca uma vontade terrível de me pôr a trabalhar a meio da madrugada, não vá um ou outro avanço devolver-me o sono).

Já as minhas noites de desempregada são diferentes. Claro. Não é que seja dada a sonhos com um futuro penoso, porque não sou. E já fui perita em regressos ao passado, mas isso foi noutra fase da minha vida. Não. Nada disto. As minhas noites agitadas nesta fase são eficazes, produtivas, ali a roçar o genial. É de madrugada que me assaltam as mais brilhantes ideias para o futuro. Tão mas tão brilhantes que o ideal seria enviar logo o CV e delinear em tópicos num bloquinho o plano de acção. (E isto é só porque às três da manhã não fica bem fazer telefonemas. Mas escrever e-mails...)

E o que é que acontece depois? O óbvio. Que passa por duas alternativas. Às vezes a ideia mantém-me acordada tempo suficiente para que se conserve até de manhã. E, aí, costumo pô-la em prática. (Estranhamente, nessa altura já me parece trivial. Só. Nada de brilhantismo.) Mas às vezes esqueço-me dela  coisa que soa a fatalidade e que garante incomodar-me todo o dia (pelo menos). Nesse caso, só me resta o consolo de me (tentar) convencer de que, se me esqueci, foi porque as minhas magníficas conclusões nocturnas afinal não eram assim tão boas.

sábado, 15 de março de 2014

Dia sessenta e oito.

Uma nota sobre a generosidade.


Há gente que nem nos conhece assim tão bem mas que se mostra disposta a virar subtilmente o mundo que tem ao alcance para nos ajudar. É nas alturas mais delicadas que muitas vezes temos surpresas  quem parecia estar perto até pode estar longe, mas quem julgávamos ausente mexe os cordéis que tem nas mãos sem sabermos. Mexê-los pode até nem resultar, ou resultar na altura errada. Mas a disponibilidade e o empenho não deixam de surpreender. Num mundo de tanta pressa e de tanto umbigo, é bonito e tocante encontrar quem olha para além de si e nos ajuda desinteressadamente, apenas a troco de que consigamos melhores dias.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Dia sessenta e sete.

O "não".


Dizer "não" é difícil.

Porque por vezes não sabemos se é a escolha certa, ainda que tudo nos diga que sim. Porque quem está do outro lado pode interpretar esse "não" de muitas formas. Porque quem nos é mais próximo pode não perceber a nossa escolha. Porque, por mais que a expliquemos a nós próprios, o "e se" pode ficar a pairar na nossa cabeça. Porque estes, diz quem sabe, não são tempos de dizer "não". Porque até parece que tudo o que vem à rede é peixe (mas não é). E porque tudo à volta nos impõe subtilmente a ideia de que o que quer que apareça já será bom, simplesmente porque apareceu.

Porque o "não" é um jogo. É sempre um jogo. Seja dito isolado ou com "sins" e outros "nãos" nas imediações da nossa vida.

Eu disse "não". Sim, foi isso mesmo: recusei uma eventual oportunidade. Porquê? Por vários motivos. Sei bem que os "nãos", nestas circunstâncias, dão azo a todo o tipo de interpretações e a críticas pouco ou nada simpáticas. Mas todas as minhas razões, uma por uma, fizeram desse "não" um "não" convicto, decidido e tão cheio de sentido que nem por um momento pensei em ocultá-lo daqui.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Dia sessenta e seis.

A solução óbvia para todos os meus problemas.


Há sempre gente à nossa volta com boas intenções. Sempre. Gente que quer genuinamente ajudar, que tenta fazer muito por nós e que, invariavelmente, parece sempre ter a ideia certa para nos salvar. Uns acham que é tudo mais fácil do que aquilo que realmente é; outros acham que viram aquilo que nós nunca vimos; outros ainda parecem coleccionar ideias, e sempre que nos vêem dão-nos trezentas e cinquenta e sete sugestões; há também os que, cruzando-se com os "classificados", tomam umas notas e de seguida telefonam e debitam anúncios e contactos; por fim, há aqueles que estão completamente fora do assunto, mas que, por serem bem-intencionados, se esforçam por ouvir o que se diz por aí e depois transmitem a mensagem recolhida humildemente, esperando que aquilo possa fazer sentido.

Já ponderei em várias ocasiões vir aqui falar de todas estas boas intenções. Ainda não o fiz porque o assunto é melindroso e longo. Mas talvez venha a escrever sobre ele, sim. Só que, por agora, toda a lista de possibilidades que enumerei ali atrás tem de ficar mais uma vez em stand by. Porquê? Porque há uns dias deram-me a melhor sugestão de sempre para conseguir trabalho, carreira, dinheiro, fama, cama, mesa e roupa lavada. Tudo. A pessoa em causa não me leu uma lista de ofertas de emprego, não descobriu de repente essa maravilha do século que são as empresas de trabalho temporário, não me alertou para nada óbvio só para o caso de eu andar a dormir. Não me disse, sequer, para emigrar. Ou para tirar outro curso. Ou para me dedicar à agricultura (conselho tão em voga há uns dias atrás). Não. Foi muito melhor do que  tudo isto.

A pessoa em causa disse-me "vai a concursos". Isto. Só isto. Quer dizer, depois explicou qual era a ideia. Mas a primeira abordagem foi esta. "Vai a concursos." Porquê? "Porque essas raparigas que agora aparecem na televisão foram todas a concursos, tu não vês? Todas. Foram a concursos da televisão e depois foram buscá-las para apresentar coisas e agora olha. São famosas e ganham dinheiro e até aparecem nas revistas e tudo!" E todas estas pseudo-novidades universais ditas assim com um ar entre o conspirativo e o recriminatório.

E eu que tenho um blogue há sessenta e seis dias. Como é que não pensei nisto dos concursos antes? Quanto tempo desperdiçado. Quando é que abrem as inscrições para o próximo reality show desta terra, mesmo?...

quarta-feira, 12 de março de 2014

Dia sessenta e cinco.

Sobre certas maldadezinhas impensadas e ocas.


Sugerir a um desempregado que só o é porque não quer trabalhar é uma generalização cruel. Insinuar que estamos meses (ou anos) sem emprego por culpa da nossa preguiça é maldade. Provocações que incluem sequências do género "as pessoas hoje em dia não querem um trabalho, querem um emprego" ferem e ofendem. Falar só por falar, sem conhecimento de causa e fazendo lei dos preconceitos, é arrogância. 

E, se há dias em que até estamos bem-dispostos e em que esse tipo de conversa nos passa ao lado, outros há em que as palavras nos atingem uma a uma. E isso não é bom. Nem bonito.

Não somos todos iguais. Há quem não queira trabalhar? Há. Há quem só queira o emprego perfeito? Há. Há quem se ache bom demais para trabalhos ditos "menores"? Há. Mas também há quem se esforce todos os dias, há meses e meses, por uma oportunidade que seja. Sem sucesso. Há quem esteja disposto a aceitar qualquer trabalho, qualquer ordenado, qualquer horário  haja trabalho, ordenado ou horário em vista. Há quem envie dezenas e dezenas de candidaturas por mês.

Há quem tente tudo. Mesmo tudo. Há quem queira. Há quem lute anos a fio. Há quem não se acomode. Há quem fuja a sete pés da sombra da bananeira. E, nesses casos, críticas, insinuações e sarcasmos são pura crueldade.

terça-feira, 11 de março de 2014

Dia sessenta e quatro.

O inesperado salva.


Às vezes a vida abranda. Os dias vão acontecendo, só, um a um. E, neles, pouco que por bons motivos nos ponha a cabeça a trabalhar mais depressa.

Por mais que se tente, que se faça, é difícil estar sem emprego e escapar a isto. Por mais que se ocupem as ideias e o tempo, há sempre momentos nos quais sentimos que a vida não anda.

Se tivermos sorte, é aí que algo acontece. Um telefonema. Uma mensagem. Um projecto, uma ideia, uma sugestão. Um convite. E, perante a surpresa, um pouco de tantas sensações: entre a alegria e o nervoso miudinho, entre o entusiasmo e a incredulidade, entre as dúvidas e a certeza de que vem algo bom a caminho. Nem que dure só uma semana, um dia, uma tarde. Às vezes é bom fugir à rotina, mesmo quando não se tem uma.

E este frenesim das experiências novas estava a fazer-me falta.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Dia sessenta e três.

A árdua tarefa de ensinar.


Hoje ninguém ensina. Ninguém tem tempo. Ninguém pode, ninguém quer, ninguém está para se dar ao trabalho ou para "perder" umas horas nessa tarefa. Formar é um problema, explicar desgasta. Bom, bom é contratar pessoas que nasceram ensinadas  ainda que essas pessoas, mesmo sabendo a parte mais importante, falhem no resto. E às vezes o resto também é essencial. Mas não faz mal. O que interessa é não ter de dedicar mais de dez minutos à penosa arte de formar ignorantes.

Senhores empregadores orgulhosamente vanguardistas do século XXI: parabéns. Tanto brilhantismo tem de ser destacado. Afinal de contas, nem toda a gente está intelectualmente ao vosso nível. Mas não se veja isto como um sinal triste: é essa genialidade que faz dos senhores empregadores uma estirpe diferente.

Ainda assim, digo eu que uma vez por outra é capaz de ser boa ideia tentar. A sério. A minha opinião vale o que vale, mas às vezes um elemento da outra estirpe poderá surpreender-vos. E julgo que não constituirá ameaça, podendo mesmo ser benéfico para a vossa empresa. Tentem. Vá lá. Garanto-vos que de vez em quando aparece uma alminha relativamente inteligente. Uma que só precisa de uma oportunidade. Nem todos os potenciais "colaboradores" são burrinhos, sabiam? Nem todos demoram assim tanto tempo a aprender. É claro que ao início todos funcionam numa base de tentativa e erro, mas nem todos insistem nos mesmos erros vezes sem conta. No fundo, nem todos dão assim tanto trabalho. 

E ainda deixo aqui uma dica amorosa, só por ser para vocês: às vezes quando ensinamos também aprendemos. É. Chega a acontecer. Até mesmo à vossa estirpe iluminada. Bem sei que o que não falta por aí são catraios totós, mas uma vez por ano lá aparece um mais desempoeirado.

(Ninguém sabia tudo quando começou. Nem metade daquilo que havia para saber. Nem um décimo. Mas, directa ou indirectamente, alguém lá esteve para ensinar. Foi assim que começámos. Todos. E era simpático que, hoje em dia, continuasse a haver muita gente disposta a ensinar. Porque há muita gente disposta a aprender.)

domingo, 9 de março de 2014

Dia sessenta e dois.

Formas de ocupar o (pouco) tempo livre de que uma desempregada (ocupada) dispõe.


Já o disse aqui: vivo tão ou mais ocupada quando não tenho emprego do que quando trabalho. Tento dedicar cada pedacinho de tempo a algo ou a alguém. É uma forma de ser útil, de fazer coisas boas e de manter a cabeça preenchida.

Apesar de tudo, é claro que há tempo livre. Algum. Pouco. Pouquiiiinho. É aquele que sobra depois de horas passadas em sites de emprego, a enviar currículos, a responder a ofertas e a enviar e-mails. E aquele que sobra depois de deixar a casa num brinco.

Ora, esquecendo os afazeres e passatempos mais óbvios, como é que se ocupa esse tempo livre? Com planos. Ou assim, ou com outras tarefas. Depende.

O  tempo serve para os recadinhos. Para ir à mercearia ou ao banco. Para resolver assuntos que demoram mais um pouco a resolver e para os quais quem trabalha não tem tempo nem paciência.

Depois, serve para tentar aproveitar a triste sina de "pessoa desocupada" para reencontrar pessoas de quem se sente a falta. Se o cenário for o melhor, estamos a falar de gente que trabalha, o que dificulta bem mais a tarefa.

Fora estas ocupações, mais comuns, é certo que todos temos aquelas muito particulares, cujo interesse pode escapar a meio mundo. Eu cá sou feliz a ocupar tempo, por exemplo, com "prospecções de mercado". Levantamentos de preços de algo que quero oferecer a alguém ou de que preciso muito mas que tem de ser comprado depois, por maior que seja a necessidade ou a importância de tratar do caso amanhã, agora, já – ontem. (O melhor lado disto, para além de estar no entusiasmo antes de tempo, está nas ideias boas, bonitas, baratas e simples que às vezes surgem destas investigações. E dar presentinhos é tão bom.)

Além disso, deste lado o tempo livre tem um alvo essencial: a cozinha. Tachos, tabuleiros, formas, a batedeira, o forno, o avental à anos 50. Receitas e mais receitas. Quando não saem muito caras, experimento-as; quando ultrapassam o orçamento dito "razoável", guardo-as para o dia em que os conceitos "patrão" e "ordenado" voltarem a existir na minha vida.

E, por fim, há o resto que nem merece tal nome, porque é um resto muito grande: todo o tempo, livre ou ocupado, é bom para fazer planos. Para agora e, sobretudo, para depois. No fundo, para sonhar.

E acho que, para o bom e para o menos bom, não há nada mais comum a todos os desempregados do que este pequeno tudo.

sábado, 8 de março de 2014

Dia sessenta e um.

Porta-moedas mais leve, consciência mais pesada.


Há os forretas. Há os poupadinhos. Há os ponderados, os cuidadosos, os indecisos.

E depois há a Sofia sem emprego.

Não é que seja forreta. Mas sou tudo o resto. Faço muuuita continha de cabeça e pelos dedos. E, acima de tudo, penso muito antes de gastar dinheiro seja no que for. Às vezes até penso demais. Voltando por momentos ao tema de há uns dias, há compras que se fazem porque têm de ser feitas, não por gosto ou por capricho. E, aí, às vezes o melhor é mesmo nem pensar. O que não invalida que eu pense.

Todos os gastos são calculados. Aquilo que poderia parecer irrisório a outra pessoa na minha situação, a mim parece-me supérfluo; aquilo que poderia ser visto como um investimento de futuro para mim é adiável. Sempre mais um bocadinho.

Quando finalmente me decido a abrir os atilhos à bolsinha (aqui não há cordões, quanto mais bolsa), aí vem ele. O peso de consciência. Inevitável, persistente, ele a moer-me e eu a remoê-lo. Se bem que tivesse mesmo de gastar aqueles quinze euros. Se bem que aquele par de calças estivesse mesmo a precisar de reforma.

O caso é tão sério que habitualmente os remorsos atacam ainda antes de o dinheiro bater em retirada.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Dia sessenta.

Aborrecer pessoas.


Toda a minha solidariedade para com aqueles senhores que estão à porta do supermercado a tentar impingir aos clientes o melhor cartão de crédito do século. Toda. Sou incapaz de os ignorar, de os tratar mal ou de fazer pouco deles. Por princípio não faço estas coisas a ninguém, mas, ainda que andasse por aí a destratar meio mundo, eles estariam sempre a salvo das minhas fúrias.

Porquê? Porque aqueles senhores têm o pior trabalho do mundo: aborrecer pessoas. Eles, os que nos telefonam para vender televisão, telefone, internet, um trem de cozinha, dois bilhetes para a revista e um pacote de amendoins por dez réis de mel coado, os que nos batem à porta porque o gás fica mais baratinho se mudarmos o contrato nos próximos trinta e sete minutos e onze segundos... Pobres pessoas.

Nunca trabalhei como... o que quer que aquilo se chame. "Comercial", "assistente de vendas", algo do género. Mas, se tivesse de ganhar a vida a fazer perguntas tolas à porta dos supermercados para em seguida tentar impingir uns cartões, chorava todos os dias. E, não, não estou a brincar. Chorava mesmo. Mais do que pela triste figura que faria, mais do que pelas cento e cinquenta respostas desagradáveis, choraria por ter de passar um dia de trabalho a fazer aquilo que mais detesto fazer: incomodar gente.

Todo o meu respeito para aqueles senhores, portanto. Têm o pior trabalho que alguém pode arranjar (vá, "o pior" talvez seja exagero, mas não anda longe). Além disso, nada me garante que um dia destes não serei eu a estar no lugar onde eles estão agora.

(Melhor: nada o garante a nenhum de nós. E imagino que aquele não seja propriamente o trabalho de sonho daquelas pessoas. Por isso, por estes dois motivos, haja consideração. O emprego que arranjaram já é terrível o suficiente.)

quinta-feira, 6 de março de 2014

Dia cinquenta e nove.

Situações assim a modos que para o constrangedoras.


Fiquei sem emprego em Agosto de 2010 e só consegui voltar a trabalhar em Maio de 2011, mas a partir daí foi sempre seguidinho até Dezembro de 2013. Quer isto dizer que no espaço de cerca de três anos e meio fiquei desempregada duas vezes, sim, mas no meio disto tudo trabalhei dois anos e sete meses sem interrupções.

Questão: há pessoas que me viram em finais de 2010 mas que desde aí nunca mais se cruzaram comigo. E que agora, por vários motivos, voltaram (ou vão voltar) a ver-me.

Pessoas que no espaço de três anos, entre um despedimento e outro, não me viram trabalhar, portanto.

Pessoas que, ainda por cima, me conhecem bem o suficiente para saberem (ou virem a saber) que estou sem emprego mas mal quanto baste para poderem fazer todo o tipo de juízos a partir daí. Não é que isso me preocupe, porque não preocupa. Mas causa-me um certo desconforto o diálogo típico: " E o que é que está a fazer agora?  Nada.  Nada? Então mas da outra vez também não estava sem fazer nada?"

Ou, à falta deste magnífico diálogo, algo ainda pior. Porque às vezes vale bem mais a bisbilhotice descarada vinda do outro lado do que aquela cara entre o agoniado e o condescendente onde mora a estampa "esta, coitada, só pode ser muito incompetente". Havendo curiosidade sempre há espaço para contarmos a nossa história sem parecermos (demasiado) ridículos.

Ainda que quem nos ouve possa ver a verdade como mentira ou como uma imprecisão por conveniência.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Dia cinquenta e oito.

As apresentações quinzenais já não são aquilo que eram.


Foi hoje. Aí fui eu outra vez. Às nove e pouco, porque de manhã é que se começa o dia. E porque, como tinha outras questões para resolver durante o dia, achei por bem tratar desta cedo, já calculando os minutos contados em múltiplos de dez que poderia ali passar à espera.

Qual quê. Mal tinha entrado e já estava a ser chamada; mal tinha sido chamada e já estava de saída. Foi tudo tão rápido que, não fosse um pequeno bloqueio no computador na altura de imprimir a folha para daqui a quinze dias, acho que tinha conseguido a proeza de partir antes de chegar.

Duas apresentações quinzenais seguidas sem nenhum fenómeno, emoção, pormenor ou simples aragem dignos de registo. Parece impossível.

terça-feira, 4 de março de 2014

Dia cinquenta e sete.

Vales, promoções, descontos, ofertas, cartões e talões.


Acho que tenho andado de olhos fechados para o mundo. Ele é ver promoções por todo o lado e eu limito-me a olhar para os cupõezinhos que os senhores do hipermercado me enviam para casa. E, mesmo assim, há alturas em que lhes dou muita atenção e outras em que acabo por me esquecer deles em casa (ou até mesmo da existência dos ditos).

Estou a fazer tudo mal. E isto é só um bocadinho irónico: na verdade, perdendo dois minutos a olhar para folhetos e para tectos e corredores de supermercados percebo facilmente que tenho andado a perder oportunidades. Há campanhas que nem chegam a sê-lo, obviamente, mas outras são verdadeiros achados. E eu reparo em algumas, mas percebi que há outras tantas que me escapam. Ou melhor: havia outras tantas que me escapavam. A partir de agora vai ser diferente. Talões e cupões sempre à mão. Um olho no tecto do supermercado e outro nos corredores. (É possível é que assim não veja os produtos, mas tudo se resolve.) Folhetos muito bem estudados.

E este texto porquê? Porque estou desempregada, porque o dinheiro é pouco, porque sou poupadinha  e porque tenho mesmo andado meio a dormir.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Dia cinquenta e seis.

Breve apontamento sobre a primeira grande desilusão.


Estão a ver aquela vaga de emprego que tinha mesmo tudo a ver convosco? E aquele cenário em que por A mais B todos os elementos pareciam jogar a vosso favor?

Isso mesmo. Agora, outro exercício. Estão a ver aquelas circunstâncias em que a ordem de prioridades dada aos critérios de selecção parece ser inversa à lógica? Em que aquilo que deveria ser essencial é remetido para segundo plano, enquanto o que pareceria secundário afinal é imprescindível?

E outro, ainda: estão a ver quando se alimentam expectativas boas, optimistas, aparentemente realistas, e num segundo cai tudo por terra?

Pronto. Eis o meu dia cinquenta e seis no que ao desemprego diz respeito. Grosso modo, foi mais ou menos isto.

Acreditei. Um pouco demais, talvez, mas porque as circunstâncias o possibilitaram. Ninguém me alimentou esperanças. A verdade é essa. Se as mantive, a culpa foi só minha. E todos nós já acreditámos nisto ou naquilo. Quando corre bem, ficamos muito felizes; quando não corre, prometemos a nós mesmos que nunca mais nos deixamos entusiasmar antes de tempo. Mas, pelo menos no meu caso, essa promessa sempre foi escusada.

Não se leia, com tudo isto, que guardo ponta de ressentimento, porque não guardo. Custa-me este desfecho, sim, por tantos motivos que nem saberia começar a falar deles. Alguns óbvios, outros nem tanto. E há lógicas que me transcendem. Mas não passa disso.

(Bom, hoje passa e vai ali até à  incredulidade e à tristeza. Mas amanhã já é outro dia.)

domingo, 2 de março de 2014

Dia cinquenta e cinco.

Sim. Os desempregados também fazem compras.


Há relatos de quem tenha visto um desempregado a comprar uma caixa de cereais, gel de banho, um pano de cozinha, detergente da loiça ou uma lâmpada. E diz-se que são até capazes de outras excentricidades – comprar estas coisas todas de uma vez, por exemplo. 

E há mais. Reza a lenda que quem não trabalha às vezes compra uma camisola. Ou uns sapatos. Ou um pijama. E depois isso é uma complicação muito grande na cabeça das testemunhas de tal fenómeno, porque é sabido que quem não trabalha não pode nem deve comprar nada (nem precisa de nada, portanto).

Senhoras e senhores: a roupa e os sapatos dos desempregados também se estragam. E, estraguem-se ou não, estas pessoas têm de se vestir e calçar. Verdade, verdadinha. Por outro lado, às vezes um pijama faz falta, por mais estranho que pareça. E lá em casa a loiça lava-se e seca-se, toma-se banho, as velas já foram substituídas por electricidade há muito e o pequeno-almoço é um hábito que se faz por manter. Extravagâncias...

Cada um sabe de si, está bem? No fundo é isso. Se o tal desempregado que descaradamente foi às compras nem sequer vos pediu dinheiro para comprar manteiga, guardanapos e uma escova de dentes (tudo de uma vez, imagine-se!), deixem-se lá desse ar reprovador.

sábado, 1 de março de 2014

Dia cinquenta e quatro.

Dinamismo e proactividade.


Há uns dias falei aqui de chavões utilizados nas ofertas de emprego. O maior será, talvez, aquele que dá título a este texto.  Hoje em dia, oferta que é oferta pede "dinamismo e proactividade" logo na primeira linha dos requisitos, e só não o faz em néon porque há uma certa formalidade a manter. 

Tudo bem. Dinâmica será conveniente, sim. Ninguém quer contratar uma pessoa "paradinha", que chega sistematicamente ao emprego com cara de quem está a trabalhar há noventa e sete horas a fio e cujo único esforço é fazer o mínimo possível ao longo da jornada. E, quanto à proactividade, já se sabe que nestes tempos é essencial  mas também levada ao limite: uma coisa é um funcionário (agora diz-se "colaborador", eu sei) proactivo, que dá sugestões, é autónomo e assume certas responsabilidades por ser competente; outra é um funcionário que até se esquece de que tem alguém a chefiá-lo e que, não lhe sendo atribuídas tarefas, tem mesmo de apelar ao lado proactivo se de facto quer trabalhar.

"Dinamismo e proactividade" soa a requisito de quem não sabe muito bem o que pedir. É chavão e basta. É preencher uma linha sem escrever coisa nenhuma.

Quando respondo a ofertas deste género, confesso que não me sinto a alma mais brilhante do mundo ao destacar que sou "dinâmica e proactiva" (até porque, habitualmente, depois vêm os outros chavões). Isto só faria sentido se não houvesse mais nada para dizer, e, no meu caso ou em qualquer outro, há sempre. Mas, às vezes, pouco resta para além de seguir o caminho proposto.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Dia cinquenta e três.

Crónica dos últimos dias.


Tenho vivido à espera de que o telefone toque. Ponto. O texto de hoje podia ficar por aqui.

Tal como dizia há uns dias, há vagas a que nos candidatamos que parecem ser feitas para nós. E nessas alturas, juntando mais um ou outro detalhe, o entusiasmo é muito e a ansiedade vai moendo (devagarinho, devagarinho). Há oportunidades que parecem estar tão, tão perto que por pouco não são já nossas. É isso. É um faltar pouco, muito pouco. Era só alguém parar para ver. Era só uma chance. Era só o telefone tocar. Só, só, só. A partir daí, diz o sonho que o mundo seria nosso.

E os últimos dias têm sido assim. Têm sido isto. A velha história do engodo que é alguém telefonar e do outro lado estar tudo menos aquilo que queremos. Aquela fracção de segundo entre a esperança repentina, de olhos arregalados e coração acelerado, e o momento em que a desilusão faz a vida voltar ao sítio de onde tarda em sair.

Vai sendo fácil esquecer. Esperar. Ter calma. Mas há momentos e momentos, e quando tudo nos ocorre a espiral recomeça.

(E ainda só passaram uns dias desde que me candidatei.)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Dia cinquenta e dois.

"Tu aproveita. Estás livre."


Disseram-mo esta manhã. E até hoje faltavam-me as palavras para um certo estado de espírito que me tem acompanhado nos últimos dois meses.

Liberdade. Parece estranho, mas é uma forma de pôr as coisas. E tem sido aquela que me move e que me mantém à tona.

Por vezes estamos "formatados" só para um lado. Em tempos eu também estive. Mas, desta vez, desformatei-me. De tal forma que me vejo a fazer várias coisas e nenhuma delas é aquela que fiz até agora (por uma série questões mais ou menos práticas que agora prefiro não explorar). E é aí que está a liberdade. Quando nos obrigam a sair de algum lado, à nossa frente surgem duas possibilidades: seguir o mesmo caminho ou procurar outro. (Há uma terceira, que é desistir e esperar sentadinho por dias melhores, mas vou deixar essa de parte.)

Liberdade quase absoluta, bem vistas as coisas. É encarar o mundo de frente e decidir por onde se quer ir. É (tentar) fazer o que se quer fazer. Enquanto trabalhamos, mesmo que seja sem querer acabamos por nos acomodar. E sobram pouco tempo e pouco espaço na cabeça para procurar mais e melhor. Quando não temos emprego, a nossa grande função passa a ser essa  procurar, procurar, procurar. E seguir por onde entendermos. Se tudo correr minimamente bem, a pouco e pouco vão surgindo as certezas quanto àquilo que se quer fazer.

É. É isto mesmo que me tem movido nos últimos tempos. A vontade de mais, de melhor, de diferente. De algo que seja mais "eu". Não estamos em tempos de escolher, não, mas tempos de sonhar são quando quisermos.

E nunca se está mais livre do que quando se tem o mundo todo pela frente.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Dia cinquenta e um.

Colaborador.

Incomoda-me. A palavra incomoda-me. O conceito. O tom em que é dita, às vezes. Ai-que-somos-todos-tão-século-XXI-e-mais-não-sei-o-quê.

Porque chamar-lhe "funcionário" é tããão anos 50. Porque chamar-lhe "empregado" é tããão medíocre. Porque chamar-lhe "trabalhador" é tããão subtil e perigosamente sindicalista.

Não. Chamemos-lhe antes "colaborador". "Colaborador" é que é. Não sei bem porquê, mas é.

Lembro-me de trabalhar (o desastre não aconteceu há tempo suficiente para me esquecer de como era) e de receber certos e-mails institucionais destinados aos "colaboradores". Aquilo enervava-me tanto. E também me lembro de há uns anos fazer um trabalho e de o meu director da altura me chamar para me dizer que aquilo estava tudo muito bem, sim, senhora, mas que tinha de substituir a palavra "funcionários" (não sei se era esta ou uma das outras, mas, para o caso, tanto faz) por "colaboradores". "Agora diz-se assim. Tens mesmo de mudar isto." Não sei definir o tom em que tal reparo me foi feito, mas sei que seguramente havia ali uma ponta de ironia  não relativa à questão vocabular, evidentemente, mas à minha triste inocência. Dentro daquela cabeça devia ouvir-se algo do género "tontinha, esta, que ainda não sabe que "funcionários" é coisa do século passado".

Não sabia, não. Agora, já sei  mas continuo sem perceber a ideia. E a palavra continua a provocar-me o chamado nervoso miudinho. Se se fala de "colaboradores" no geral, é mau; se se fala deles em particular (ou seja, se em última análise alguém se refere a mim como "colaboradora"), pior ainda.

Nunca conseguiram explicar-me o conceito de forma a que eu o perceba. Só sei que habitualmente a palavra é dita num tom entre o depreciativo e o muito-para-lá-de-moderninho. E que não raras vezes aparece associada a ofertas de emprego, e eu, com este meu proverbial mau feitio, fico logo desconfiada. Não gosto nem um bocadinho de anúncios onde, em vez de se pedir alguém para uma função específica, se "admitem colaboradores" para funções indefinidas. Super-giras-e-interessantes-e-enriquecedoras, já se sabe. Mas indefinidas, ainda assim.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Dia cinquenta.

Cinquenta dias e cinquenta noites.


Uma (espécie de) entrevista de emprego, abordagens de vários géneros, a SIC cá em casa, três apresentações quinzenais, ofertas revoltantes, uma proposta vinda do centro de emprego, um sem-fim de respostas a anúncios e de currículos enviados. Dos outros, abraços, mimos, ajudas, sugestões, perguntas, partilhas, críticas, repreensões. Em mim, sonhos nocturnos e diurnos  com empregos, entrevistas, possibilidades, falhanços, regressos. (O passado aparece de assalto; o futuro está sempre presente.)

Puxo pela cabeça há cinquenta dias (há mais uns quantos, até). Uns bons, outros nem tanto. A delinear objectivos, a falar com pessoas, a procurar alternativas, a alimentar esperanças, a fintar angústias. A fazer planos e figas.

Cinquenta.

No que toca a estas contas, era bom não chegar aos cem.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e nove.

Sobre os amigos e as ocasiões.


Diz-se que "é no hospital e na prisão que se conhecem os amigos". Numa versão século XXI, faz sentido incluir o desemprego no provérbio. Ficar sem trabalho ajuda-nos a conhecer melhor quem está à nossa volta. E por muitos motivos.

Quando ficamos sem emprego sabemos quem está connosco e quem não está. Quem não faz mais porque não pode e quem podia fazer tudo e nem tenta. Descobrimos que há quem nos conheça mal e queira muito ajudar e quem nos conheça bem e não faça nenhuma questão de ajudar nem um pouco. Mais, até: descobrimos que há quem nos conheça muito melhor do que aquilo que pensávamos e que há quem afinal lide connosco há uma vida e não nos conheça de todo.

E tudo isto é importante. Porque eu cá gosto de conhecer as pessoas  mais do que de conhecer pessoas, apenas. Gosto de saber quem tenho por perto.

E, para o bom e para o mau, antes agora que mais tarde.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e oito.

Lá fora. Cá dentro.


É vê-los partir. Não há mês em que pelo menos um não vá para longe. É perder a conta àqueles que já foram, mas saber que os dedos das mãos não chegam, nem de longe nem de perto, para essa conta se fazer. Estão por todo o lado; o mundo tem quatro cantos e eles estão nesses cantos, nas linhas que os unem e no espaço restante. Uns foram trabalhar, outros estudar; uns levaram o plano traçado, outros não levaram plano nenhum; uns mudaram de país, outros de país e de profissão. Mas todos mudaram de vida.

Não me perguntem porque é que o não faço. Há muitos motivos. Não querer talvez resuma todos eles. Em tempos partir também me pareceu a melhor opção a tomar; noutras alturas pareceu-me até a única. Nesses tempos, via-os sair e sonhava fazer o mesmo. Escolhi países, informei-me, investiguei. Delineei planos quase completos para uma "fuga" a tudo isto. Felizmente, de uma forma ou de outra incompletos o suficiente para que nenhum deles tenha chegado a bom porto. Talvez já nessa altura parte de mim desconfiasse, embora eu o não soubesse, de que mais tarde, com a mesma certeza com que nesses tempos queria partir, iria querer ficar.

Não vou porque não quero ir. E isto, com tudo o que o justifica ou só por si, é motivo mais do que suficiente para nem sequer ponderar outra hipótese.

(Curiosamente, os que foram para longe não insistem comigo para que o faça. Nem sequer mo propõem. Sugestões do género só partem de quem nunca de cá saiu nem tão-pouco ponderou fazê-lo.)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e sete.

"Eu sou a pessoa certa para esta vaga."


Às vezes tenho vontade de responder assim a certos anúncios de emprego. Quando preencho os requisitos todos, quando sei que sou capaz de desempenhar aquelas tarefas, quando a área tem tudo a ver comigo, quando gosto realmente do tipo de trabalho em causa. Quando tudo bate tão certo. Qual textinho, qual currículo, qual carta de apresentação, qual exemplo de trabalhos anteriores, qual quê. Era um e-mail só com esta frase e pronto.

É claro que acabo por não o fazer. Do outro lado até pode estar alguém que acharia uma resposta deste género um sinal francamente promissor, mas, por via das dúvidas, prefiro não inovar. Envio apenas aquilo que me pedem - mas faço-o sempre com aquela angústia de quem sabe que há muito que não está no currículo e que é precisamente esse "muito" que faz a diferença. Só falta uma oportunidade para o mostrar.

E depois há o texto do e-mail. Última e derradeira oportunidade para dizer aquilo que o CV não diz. Para mostrar que por A mais B mais C somos oh-tão-bons e oh-tão-indicados-para-a-função. É aí que, nestes casos, eu deixo subtilmente duas ou três notas relativas ao facto de as minhas competências serem precisamente aquelas que se procuram. Se bem que a minha vontade fosse deixar o discurso formal e vazio de parte e trocá-lo por um "sei fazer tudo aquilo que pedem, esta vaga é a minha cara, estou para lá de entusiasmada e preencho todos os requisitos de uma forma tão plena e extraordinária que se estivesse no vosso lugar contratava-me já amanhã".

Presunção e água benta... Eu sei, eu sei. Mas toda eu sou convicção, às vezes. E entusiasmo. E "quem-me-deras".

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e seis.

Sobre as rotinas.


Às vezes penso nas memórias e nas suposições que ficam quando algo muda ou alguém desaparece. O dia-a-dia de quem trabalha e anda de transportes públicos inclui ver as mesmas caras todas as manhãs. Na paragem, no autocarro, no caminho entre o autocarro e a porta (do trabalho ou de casa). Há quem não prime pela memória visual, mas esse não é de todo o meu caso e tudo isto leva-me a achar que alguém pode aperceber-se, só porque sim, de que desapareci. (Tal como eu me apereceberia da ausência de algunss pessoas, que mais não foram do que silenciosas companhias diárias de viagem ao longo de todos os trajectos que fiz.) Na minha cabeça, e noutras, de ideia em ideia é fácil chegar à mais óbvia: a rotina mudou. Talvez o horário, talvez o trabalho, talvez a morada. Talvez agora haja carro. Ou não haja emprego. (Ideias mais trágicas também podem ocorrer, mas vou deixá-las de fora.)

Hoje, no autocarro, cruzei-me com um motorista que há uns dois anos me levava, em muitas madrugadas, para o trabalho. (Bom, na verdade eu fazia metade do caminho com ele; a outra metade era feita à boleia com um amigo e é um amigo que bem merecia que o mundo acordasse e o visse; chama-se Diogo Batáguas e é um poço de talentos vários.) E a prova de que há quem não esqueça as caras com que se cruzou diariamente no passado está neste motorista. Quando me viu, sorriu, surpreendido, e perguntou-me o que era feito de mim. Sorri-lhe, disse duas ou três palavras de circunstância, agradeci a simpatia e fui sentar-me. Nada mais. Mas voltei a pensar em tudo isto: na forma como desconhecidos nos fixam, na forma como fixamos desconhecidos, e na forma como, sem querer e sem saber, temos sobre eles o mesmo efeito que eles têm sobre nós: a estranheza que fica, as perguntas que se fazem, a imagem que se guarda.

Mal sabe o senhor motorista que, desde que deixou de me levar naquelas madrugadas, eu já saí do emprego em que estava na altura, já estive noutro e entretanto também já fiquei sem ele.

As voltas que a vida dá entre o dia em que deixamos de andar de autocarro às seis da manhã e o dia em que reecontramos quem o conduzia a essa hora.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e cinco.

Candidatemo-nos espontaneamente a tudo.


As candidaturas espontâneas são um mundo sem fim. O conceito é simples: equivale a enviar o currículo para tudo o que é empresa. Da forma mais básica, anexando-o a um e-mail, ou pelo caminho mais tortuoso, no caso das empresas que têm nos sites um formulário próprio para o efeito. E quando tiramos um dia para as ditas candidaturas há logo duas conclusões a que chegamos de imediato: a primeira é que preencher esses formulários é muuuuuito aborrecido (alguns levam quase uma hora a completar, com dezenas de campos que nem sequer permitem colar texto a partir do CV e onde nos perguntam tudo, desde as habilitações literárias ao tamanho que calçamos); a segunda é que, afinal, se queremos levar o lado espontâneo da procura de emprego a sério bem podemos tirar não um dia, mas todos eles. Porque começamos a pensar por áreas. E a fazer pesquisas. E a encontrar empresas. Uma leva a outra, e depois a outra, e depois a outra. Vamos saltando de área em área, de empresa em empresa, e quando damos por nós já passámos aos lugares (consoante a vontade de partir ou de ficar). Entretanto vão-nos ocorrendo empresas "soltas", que não têm propriamente nada a ver com... nada, mas que por algum motivo nos parecem boas alternativas. Nesta fase, já temos um documento aberto no computador com meia dúzia de tópicos mal-amanhados para não perdermos o fio à meada. Mas perdemo-lo. Inevitavelmente.

É. Só se diz que as conversas são como as cerejas porque quando a expressão nasceu ainda não havia candidaturas espontâneas.

Depois disto tudo, no "fim" (chamar-lhe "fim" é simpatia, porque como já se percebeu o processo é virtualmente infinito) fica sempre aquela vaga sensação de tempo perdido  que, alíás, nos acompanhou envio após envio. Pensando bem, conhecemos quantas pessoas que tenham conseguido emprego por este meio?

Pois. Eu também não me lembro de nenhuma.

Uma nota, ainda, para as respostas. Não havendo um e-mail específico para o envio de candidaturas, uma em cada cinquenta tentativas merece uma palavrinha de cortesia vinda do outro lado. Havendo esse e-mail, ou um formulário, temos o prazer de receber aquela resposta automática que todos conhecemos tão bem: algo que começa por "agradecemos o interesse manifestado" (ou uma das restantes variações) e termina com algo semelhante a "o seu currículo ficará registado na nossa base de dados e entraremos em contacto caso surja alguma oportunidade de recrutamento compatível com o seu perfil".

Nunca surge, claro.

Porque é que insistimos? Não sei. Talvez porque seguir todos os caminhos seja uma forma de sossegarmos a nossa consciência.

E, por outro lado, há dias em que temos de nos convencer a nós próprios de que estamos a fazer tudo. De que não estamos parados. Porque, por mais que não o estejamos, às vezes sentimos que nunca fazemos o suficiente.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e quatro.

Rápida, agradável e útil.


Eis o resumo da minha apresentação quinzenal de hoje.

Parece impossível, eu sei. Mas o impensável aconteceu esta manhã.

Rápida porque, imagine-se, ainda não tinha tirado a senha da máquina (não tinha mesmo!) e já estava a ser chamada para a sala onde é feito o atendimento. Inédito. Até demorei um bocadinho mais a entrar, talvez por culpa de uma certa comoção provocada por tão inesperado fenómeno.

Agradável porque fui atendida por uma senhora simpática, atenciosa, educada, sorridente, comunicativa. Todas aquelas características extremamente comuns em qualquer estaminé de atendimento a desempregados, como se sabe.

Útil porque a dita senhora viu aquilo que eu nunca veria: tenho um mês para renovar o meu Cartão de Cidadão. E ainda me explicou que, se eu o deixasse expirar, seria impossível apresentar-me ali (na junta de freguesia); nessa circunstância teria de o fazer no centro de emprego. Não é que tal mudança de rota fosse grande transtorno para mim, mas gosto muito de respeitar prazos (de renovações de documentos, de pagamento de contas ou de validade de iogurtes). Além disso, imagino que será com certeza preferível evitar qualquer tipo de alterações, ainda que administrativas, que envolvam o IEFP.

As apresentações quinzenais deviam ser sempre assim. Por uma vez, o meu passeiozinho até à junta não foi, de todo, uma perda de tempo.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e três.

Pedimos desculpa por esta interrupção.


O blogue segue dentro de vinte e quatro horas.

(Por agora, repouso, medicamentos e chá quente.)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e dois.

Projectos e promessas e resoluções e objectivos.


"Assim que voltar a trabalhar, o meu primeiro ordenado será para [algo-importante-a-determinado-nível-e-que-por-algum-motivo-andamos-a-adiar-há-demasiado-tempo]."

Ai, os planos. Ai, as ideias. Ai, o futuro. Ai, que bonito que será o mundo quando voltarmos a ter dinheirinho ao fim do mês.

É isso. Da próxima vez é que vai ser. O primeiro ordenado da nova série (ou a primeira série de ordenados, consoante o nível de exigência financeira) vai servir para pôr determinado assunto em dia. Para resolver um problema que tardamos em resolver. Para fazer algo que já prometemos a nós próprios ou a alguém há muito tempo.

Enquanto temos trabalho e ordenado, os dias vão correndo e os gastos são feitos num equilíbrio por vezes complexo entre o possível e o necessário. Mas, visto à distância criada pela falta de emprego, o mundo parece diferente, como se as possibilidades fossem bem maiores do que aquilo que pareciam ser em tempos mas a inércia ou a falta de imaginação nos tivessem impedido de as aproveitar. Quando temos um ordenado, fazemos todo o tipo de malabarismos para o esticar; quando não temos, há mil e um projectos que a nossa vontade nos garante que poremos em prática mal recebamos o próximo.

Nós, os desempregados, não sonhamos só com um novo emprego: sonhamos ("sonhar" é o verbo adequado) com um novo ordenado. Vemos nele tantas possibilidades como as que vê um jovenzinho que vai trabalhar pela primeira vez. A palavra "ordenado" parece equivaler a "solução de todos os problemas". É só ideias boas e bonitas para o destino que terá. E o facto de já se ter tido tal coisa na vida deixa-nos pouco mais sensíveis à realidade do que um estreante nestas lides.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e um.

Mais uma vez, os anúncios de emprego.


Há os anúncios de emprego coerentes. Os exagerados. Os absurdos. Os razoáveis. Os incompreensíveis. Os ridículos. Os mal escritos. Os ofensivos. Os curiosos.

E depois há os outros. Aqueles que partem de empregadores que, aparentemente, não sabem bem o que querem. Querem tudo. Ou qualquer coisa. Ou algo mais ou menos assim-assim, dependendo de infinitas circunstâncias e possibilidades consoante o dia seja de sol ou de chuva. A descrição daquilo que se pretende é longa mas vaga. Vazia, melhor dizendo. É uma não-descrição, no fundo, porque ali cabe tudo  ou nada, conforme o ponto de vista.

O que não falta por essa internet fora são guias práticos para criar currículos eficazes, e todos insistem, naturalmente, na importância de evitar os clichés. Ainda assim, quando se consultam anúncios de emprego percebe-se que, afinal, muitas das empresas querem isso mesmo: lugares-comuns. Ou então não querem, só que, visto que procuram algo mas não sabem exactamente o quê, optam por um anúncio à base de frases feitas. Pedem alguém "dinâmico, proactivo e polivalente", com "excelentes capacidades de relacionamento interpessoal, de trabalho em equipa e de gestão de tempo", que seja "organizado, responsável e perfeccionista", que possua um "bom ritmo de aprendizagem", que se sinta "preparado para trabalhar sob pressão" e que domine "as ferramentas MS Office". Em troca, oferece-se outra "chapa cinco": a inevitável "integração numa equipa jovem e dinâmica", a bendita "formação contínua", o habitual "excelente ambiente de trabalho", a incontornável "possibilidade de crescimento na carreira", e, finalmente, a cereja no topo do bolo: a "remuneração compatível com a função e a experiência demonstrada".

Bem espremidinho, bem espremidinho... Nada, aqui.

Preencher aqueles intermináveis campos do currículo destinados às competências pode ser uma pequena tortura quando insistimos em inovar, em ser diferentes, em mostrar aquilo que nos diferencia; mas, bem vistas as coisas, tanto esforço imaginativo pode nem sempre ser assim tão boa ideia. Ou, pelo menos, se calhar vale a pena ter um "currículo-chavão" pronto a enviar nestas alturas. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Dia quarenta.

A minha atribulada relação com a generosidade.


Suponho que este assunto não provoque a mesma reacção em toda a gente. Aliás, seguramente não provoca: há com certeza os que são capazes de ver isto pela perspectiva útil, prática, até conveniente.

Eu não consigo ceder a certas coisas. Por mais que valorize a gentileza (e valorizo), por mais que a nobreza do gesto me sensibilize (e sensibiliza), por mais que compreenda a atitude (que eu própria tomaria sem hesitar se o caso fosse o inverso), há ajudas que sou incapaz de aceitar. Porque envolvem muitos custos, porque resultam de opções minhas, por vergonha, por princípio. Obviamente, há pessoas e pessoas. E, acima de tudo, há ajudas e ajudas: não estou a falar de um lanche, de um bilhete de cinema ou de presentes propriamente ditos. Estou a falar... do resto.

A minha vontade, agora, é usar aquele lugar-comum que costumamos associar a outros contextos: "não és tu, sou eu". Gosto de contar com o que tenho. Apenas e só. A culpa começou por ser dos moldes em que me encaixaram desde pequenina e hoje em dia é também minha. Faço contas à vida consoante as possibilidades que tenho. Digo "sim" àquilo a que posso dizer sim e "não" quando não há alternativa ou quando o "sim" me parece possível mas imprudente tendo em conta as circunstâncias. (E também respondo "não" quando tenho outros planos. Ou quando não me apetece fazer determinada coisa. Quem diz a verdade não merece castigo...)

Escrevo sobre isto porque, mesmo que tudo não passe de um equívoco e que a minha recusa não se deva propriamente ao ar em excesso na minha carteira, estando eu desempregada a associação habitual é essa. E muitas vezes nem vale a pena explicar que a questão não está no dinheiro, porque quem ouve acha que isso é apenas uma desculpa.

A prova de que vivo rodeada de gente boa e generosa está na frequência com que surge, após o meu "não", um "mas eu ajudo-te", um "mas pago eu", um "mas eu compro". E em certos casos essa disponibilidade é de tal forma sincera que se torna francamente comovedora.

Eu é que não sei lidar com ela. Nem tão-pouco aceitá-la.