sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Dia dezoito.

Ai-que-somos-todos-tão-empreendedores.


Nesta terra, hoje em dia, é praticamente obrigatório ser empreendedor. Acima de tudo quando estamos sem emprego. Temos de ter mil e uma ideias a fervilhar, espírito de aventura, vontade de correr riscos. O medo é proibido; não se aceita sequer em modalidades mais fraquinhas, como o receio ou a insegurança. Além disso, é essencial ser-se dono de uma imaginação inigualável, para criar algo diferente de tudo aquilo que já se viu  ou, pelo menos, para descobrir aquele "quê" que faz da nossa ideia uma ideia brilhante, genial, única. "A" ideia. Temos todos de ser desempoeirados, corajosos, talvez até meio loucos.

E, depois, até parece que só há histórias boas e bonitas. É ver gente feliz e bem-sucedida por todo o lado. O senhor na casa dos cinquenta que era gestor de uma empresa mas que resolveu que fatos, gravatas e contas não eram para ele e que agora enriqueceu a plantar, apanhar e vender repolhos biológicos. O grupo de amigos desempregados que comprou uma roulotte em quinta mão, juntou uns trocos e foi fotografar marcos do correio Europa fora. A D. Adelaide, que já é avó, mas que, como não gosta de estar parada, comprou um fogãozinho mais jeitoso e começou a vender pastéis de feijão para todo o país.

Gabo a coragem de quem decide deixar tudo para trás e arriscar. Sinceramente, gabo. Seja porque quer mudar de vida, seja porque, não querendo, se vê na necessidade de o fazer. Há exemplos inspiradores, sim  quer pela ideia, quer pelo resultado.

Mas falta aqui o lado B. E falta sempre, ou quase sempre. Porque, para começar, ninguém faz grande questão de contar as outras histórias. O antigo gestor teve muito sucesso com a plantação de repolhos, mas o antigo contabilista tentou safar-se com tangerinas, não teve a mesma sorte e acabou por voltar à cidade de onde tinha saído; os amigos que fotografam marcos do correio vendem as imagens para todo o mundo, mas os que vinham naquela roulotte lá mais atrás e que iam fotografar bombas de gasolina tiveram uma avaria e o prejuízo foi tanto que ainda estão a tentar descobrir como é que hão-de pagar as contas; a D. Adelaide não tem mãos a medir com as encomendas de pastéis de feijão, mas a D. Manuela, que investiu nos queques de avelã, já só os faz para os netos (e os queques, curiosamente, até são melhores do que os pastéis).

E há outro problema. É que todos têm direito a ser empreendedores, mas nem todos conseguem sê-lo. Nem toda a gente nasce destemida, criativa ou aventureira. E estas características não são propriamente daquelas que se desenvolvem com algum treino; ou se é assim, ou não se é. Dizer que os tempos estão maus, que é preciso arriscar tudo e que não faltam casos de sucesso é fácil; pôr tudo isso em prática, quando não se conta com as virtudes necessárias para tal, é muito difícil. É quase impossível.

Somos todos diferentes. No fundo, é só isto. E quem tem uma zona de conforto um pouco mais dilatada não tem de ser olhado de lado por causa disso. Ninguém é obrigado a querer arriscar, quanto mais a arriscar mesmo. Mas o discurso que nos rodeia é esse: empreendedorismo para cá, empreendedorismo para lá, empreendedorismo sempre e acima de tudo. E quem não for corajoso que se faça, porque quem não for empreendedor aparentemente vale menos do que os outros.

Sem comentários:

Enviar um comentário