sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Dia cinquenta e três.

Crónica dos últimos dias.


Tenho vivido à espera de que o telefone toque. Ponto. O texto de hoje podia ficar por aqui.

Tal como dizia há uns dias, há vagas a que nos candidatamos que parecem ser feitas para nós. E nessas alturas, juntando mais um ou outro detalhe, o entusiasmo é muito e a ansiedade vai moendo (devagarinho, devagarinho). Há oportunidades que parecem estar tão, tão perto que por pouco não são já nossas. É isso. É um faltar pouco, muito pouco. Era só alguém parar para ver. Era só uma chance. Era só o telefone tocar. Só, só, só. A partir daí, diz o sonho que o mundo seria nosso.

E os últimos dias têm sido assim. Têm sido isto. A velha história do engodo que é alguém telefonar e do outro lado estar tudo menos aquilo que queremos. Aquela fracção de segundo entre a esperança repentina, de olhos arregalados e coração acelerado, e o momento em que a desilusão faz a vida voltar ao sítio de onde tarda em sair.

Vai sendo fácil esquecer. Esperar. Ter calma. Mas há momentos e momentos, e quando tudo nos ocorre a espiral recomeça.

(E ainda só passaram uns dias desde que me candidatei.)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Dia cinquenta e dois.

"Tu aproveita. Estás livre."


Disseram-mo esta manhã. E até hoje faltavam-me as palavras para um certo estado de espírito que me tem acompanhado nos últimos dois meses.

Liberdade. Parece estranho, mas é uma forma de pôr as coisas. E tem sido aquela que me move e que me mantém à tona.

Por vezes estamos "formatados" só para um lado. Em tempos eu também estive. Mas, desta vez, desformatei-me. De tal forma que me vejo a fazer várias coisas e nenhuma delas é aquela que fiz até agora (por uma série questões mais ou menos práticas que agora prefiro não explorar). E é aí que está a liberdade. Quando nos obrigam a sair de algum lado, à nossa frente surgem duas possibilidades: seguir o mesmo caminho ou procurar outro. (Há uma terceira, que é desistir e esperar sentadinho por dias melhores, mas vou deixar essa de parte.)

Liberdade quase absoluta, bem vistas as coisas. É encarar o mundo de frente e decidir por onde se quer ir. É (tentar) fazer o que se quer fazer. Enquanto trabalhamos, mesmo que seja sem querer acabamos por nos acomodar. E sobram pouco tempo e pouco espaço na cabeça para procurar mais e melhor. Quando não temos emprego, a nossa grande função passa a ser essa  procurar, procurar, procurar. E seguir por onde entendermos. Se tudo correr minimamente bem, a pouco e pouco vão surgindo as certezas quanto àquilo que se quer fazer.

É. É isto mesmo que me tem movido nos últimos tempos. A vontade de mais, de melhor, de diferente. De algo que seja mais "eu". Não estamos em tempos de escolher, não, mas tempos de sonhar são quando quisermos.

E nunca se está mais livre do que quando se tem o mundo todo pela frente.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Dia cinquenta e um.

Colaborador.

Incomoda-me. A palavra incomoda-me. O conceito. O tom em que é dita, às vezes. Ai-que-somos-todos-tão-século-XXI-e-mais-não-sei-o-quê.

Porque chamar-lhe "funcionário" é tããão anos 50. Porque chamar-lhe "empregado" é tããão medíocre. Porque chamar-lhe "trabalhador" é tããão subtil e perigosamente sindicalista.

Não. Chamemos-lhe antes "colaborador". "Colaborador" é que é. Não sei bem porquê, mas é.

Lembro-me de trabalhar (o desastre não aconteceu há tempo suficiente para me esquecer de como era) e de receber certos e-mails institucionais destinados aos "colaboradores". Aquilo enervava-me tanto. E também me lembro de há uns anos fazer um trabalho e de o meu director da altura me chamar para me dizer que aquilo estava tudo muito bem, sim, senhora, mas que tinha de substituir a palavra "funcionários" (não sei se era esta ou uma das outras, mas, para o caso, tanto faz) por "colaboradores". "Agora diz-se assim. Tens mesmo de mudar isto." Não sei definir o tom em que tal reparo me foi feito, mas sei que seguramente havia ali uma ponta de ironia  não relativa à questão vocabular, evidentemente, mas à minha triste inocência. Dentro daquela cabeça devia ouvir-se algo do género "tontinha, esta, que ainda não sabe que "funcionários" é coisa do século passado".

Não sabia, não. Agora, já sei  mas continuo sem perceber a ideia. E a palavra continua a provocar-me o chamado nervoso miudinho. Se se fala de "colaboradores" no geral, é mau; se se fala deles em particular (ou seja, se em última análise alguém se refere a mim como "colaboradora"), pior ainda.

Nunca conseguiram explicar-me o conceito de forma a que eu o perceba. Só sei que habitualmente a palavra é dita num tom entre o depreciativo e o muito-para-lá-de-moderninho. E que não raras vezes aparece associada a ofertas de emprego, e eu, com este meu proverbial mau feitio, fico logo desconfiada. Não gosto nem um bocadinho de anúncios onde, em vez de se pedir alguém para uma função específica, se "admitem colaboradores" para funções indefinidas. Super-giras-e-interessantes-e-enriquecedoras, já se sabe. Mas indefinidas, ainda assim.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Dia cinquenta.

Cinquenta dias e cinquenta noites.


Uma (espécie de) entrevista de emprego, abordagens de vários géneros, a SIC cá em casa, três apresentações quinzenais, ofertas revoltantes, uma proposta vinda do centro de emprego, um sem-fim de respostas a anúncios e de currículos enviados. Dos outros, abraços, mimos, ajudas, sugestões, perguntas, partilhas, críticas, repreensões. Em mim, sonhos nocturnos e diurnos  com empregos, entrevistas, possibilidades, falhanços, regressos. (O passado aparece de assalto; o futuro está sempre presente.)

Puxo pela cabeça há cinquenta dias (há mais uns quantos, até). Uns bons, outros nem tanto. A delinear objectivos, a falar com pessoas, a procurar alternativas, a alimentar esperanças, a fintar angústias. A fazer planos e figas.

Cinquenta.

No que toca a estas contas, era bom não chegar aos cem.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e nove.

Sobre os amigos e as ocasiões.


Diz-se que "é no hospital e na prisão que se conhecem os amigos". Numa versão século XXI, faz sentido incluir o desemprego no provérbio. Ficar sem trabalho ajuda-nos a conhecer melhor quem está à nossa volta. E por muitos motivos.

Quando ficamos sem emprego sabemos quem está connosco e quem não está. Quem não faz mais porque não pode e quem podia fazer tudo e nem tenta. Descobrimos que há quem nos conheça mal e queira muito ajudar e quem nos conheça bem e não faça nenhuma questão de ajudar nem um pouco. Mais, até: descobrimos que há quem nos conheça muito melhor do que aquilo que pensávamos e que há quem afinal lide connosco há uma vida e não nos conheça de todo.

E tudo isto é importante. Porque eu cá gosto de conhecer as pessoas  mais do que de conhecer pessoas, apenas. Gosto de saber quem tenho por perto.

E, para o bom e para o mau, antes agora que mais tarde.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e oito.

Lá fora. Cá dentro.


É vê-los partir. Não há mês em que pelo menos um não vá para longe. É perder a conta àqueles que já foram, mas saber que os dedos das mãos não chegam, nem de longe nem de perto, para essa conta se fazer. Estão por todo o lado; o mundo tem quatro cantos e eles estão nesses cantos, nas linhas que os unem e no espaço restante. Uns foram trabalhar, outros estudar; uns levaram o plano traçado, outros não levaram plano nenhum; uns mudaram de país, outros de país e de profissão. Mas todos mudaram de vida.

Não me perguntem porque é que o não faço. Há muitos motivos. Não querer talvez resuma todos eles. Em tempos partir também me pareceu a melhor opção a tomar; noutras alturas pareceu-me até a única. Nesses tempos, via-os sair e sonhava fazer o mesmo. Escolhi países, informei-me, investiguei. Delineei planos quase completos para uma "fuga" a tudo isto. Felizmente, de uma forma ou de outra incompletos o suficiente para que nenhum deles tenha chegado a bom porto. Talvez já nessa altura parte de mim desconfiasse, embora eu o não soubesse, de que mais tarde, com a mesma certeza com que nesses tempos queria partir, iria querer ficar.

Não vou porque não quero ir. E isto, com tudo o que o justifica ou só por si, é motivo mais do que suficiente para nem sequer ponderar outra hipótese.

(Curiosamente, os que foram para longe não insistem comigo para que o faça. Nem sequer mo propõem. Sugestões do género só partem de quem nunca de cá saiu nem tão-pouco ponderou fazê-lo.)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e sete.

"Eu sou a pessoa certa para esta vaga."


Às vezes tenho vontade de responder assim a certos anúncios de emprego. Quando preencho os requisitos todos, quando sei que sou capaz de desempenhar aquelas tarefas, quando a área tem tudo a ver comigo, quando gosto realmente do tipo de trabalho em causa. Quando tudo bate tão certo. Qual textinho, qual currículo, qual carta de apresentação, qual exemplo de trabalhos anteriores, qual quê. Era um e-mail só com esta frase e pronto.

É claro que acabo por não o fazer. Do outro lado até pode estar alguém que acharia uma resposta deste género um sinal francamente promissor, mas, por via das dúvidas, prefiro não inovar. Envio apenas aquilo que me pedem - mas faço-o sempre com aquela angústia de quem sabe que há muito que não está no currículo e que é precisamente esse "muito" que faz a diferença. Só falta uma oportunidade para o mostrar.

E depois há o texto do e-mail. Última e derradeira oportunidade para dizer aquilo que o CV não diz. Para mostrar que por A mais B mais C somos oh-tão-bons e oh-tão-indicados-para-a-função. É aí que, nestes casos, eu deixo subtilmente duas ou três notas relativas ao facto de as minhas competências serem precisamente aquelas que se procuram. Se bem que a minha vontade fosse deixar o discurso formal e vazio de parte e trocá-lo por um "sei fazer tudo aquilo que pedem, esta vaga é a minha cara, estou para lá de entusiasmada e preencho todos os requisitos de uma forma tão plena e extraordinária que se estivesse no vosso lugar contratava-me já amanhã".

Presunção e água benta... Eu sei, eu sei. Mas toda eu sou convicção, às vezes. E entusiasmo. E "quem-me-deras".

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e seis.

Sobre as rotinas.


Às vezes penso nas memórias e nas suposições que ficam quando algo muda ou alguém desaparece. O dia-a-dia de quem trabalha e anda de transportes públicos inclui ver as mesmas caras todas as manhãs. Na paragem, no autocarro, no caminho entre o autocarro e a porta (do trabalho ou de casa). Há quem não prime pela memória visual, mas esse não é de todo o meu caso e tudo isto leva-me a achar que alguém pode aperceber-se, só porque sim, de que desapareci. (Tal como eu me apereceberia da ausência de algunss pessoas, que mais não foram do que silenciosas companhias diárias de viagem ao longo de todos os trajectos que fiz.) Na minha cabeça, e noutras, de ideia em ideia é fácil chegar à mais óbvia: a rotina mudou. Talvez o horário, talvez o trabalho, talvez a morada. Talvez agora haja carro. Ou não haja emprego. (Ideias mais trágicas também podem ocorrer, mas vou deixá-las de fora.)

Hoje, no autocarro, cruzei-me com um motorista que há uns dois anos me levava, em muitas madrugadas, para o trabalho. (Bom, na verdade eu fazia metade do caminho com ele; a outra metade era feita à boleia com um amigo e é um amigo que bem merecia que o mundo acordasse e o visse; chama-se Diogo Batáguas e é um poço de talentos vários.) E a prova de que há quem não esqueça as caras com que se cruzou diariamente no passado está neste motorista. Quando me viu, sorriu, surpreendido, e perguntou-me o que era feito de mim. Sorri-lhe, disse duas ou três palavras de circunstância, agradeci a simpatia e fui sentar-me. Nada mais. Mas voltei a pensar em tudo isto: na forma como desconhecidos nos fixam, na forma como fixamos desconhecidos, e na forma como, sem querer e sem saber, temos sobre eles o mesmo efeito que eles têm sobre nós: a estranheza que fica, as perguntas que se fazem, a imagem que se guarda.

Mal sabe o senhor motorista que, desde que deixou de me levar naquelas madrugadas, eu já saí do emprego em que estava na altura, já estive noutro e entretanto também já fiquei sem ele.

As voltas que a vida dá entre o dia em que deixamos de andar de autocarro às seis da manhã e o dia em que reecontramos quem o conduzia a essa hora.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e cinco.

Candidatemo-nos espontaneamente a tudo.


As candidaturas espontâneas são um mundo sem fim. O conceito é simples: equivale a enviar o currículo para tudo o que é empresa. Da forma mais básica, anexando-o a um e-mail, ou pelo caminho mais tortuoso, no caso das empresas que têm nos sites um formulário próprio para o efeito. E quando tiramos um dia para as ditas candidaturas há logo duas conclusões a que chegamos de imediato: a primeira é que preencher esses formulários é muuuuuito aborrecido (alguns levam quase uma hora a completar, com dezenas de campos que nem sequer permitem colar texto a partir do CV e onde nos perguntam tudo, desde as habilitações literárias ao tamanho que calçamos); a segunda é que, afinal, se queremos levar o lado espontâneo da procura de emprego a sério bem podemos tirar não um dia, mas todos eles. Porque começamos a pensar por áreas. E a fazer pesquisas. E a encontrar empresas. Uma leva a outra, e depois a outra, e depois a outra. Vamos saltando de área em área, de empresa em empresa, e quando damos por nós já passámos aos lugares (consoante a vontade de partir ou de ficar). Entretanto vão-nos ocorrendo empresas "soltas", que não têm propriamente nada a ver com... nada, mas que por algum motivo nos parecem boas alternativas. Nesta fase, já temos um documento aberto no computador com meia dúzia de tópicos mal-amanhados para não perdermos o fio à meada. Mas perdemo-lo. Inevitavelmente.

É. Só se diz que as conversas são como as cerejas porque quando a expressão nasceu ainda não havia candidaturas espontâneas.

Depois disto tudo, no "fim" (chamar-lhe "fim" é simpatia, porque como já se percebeu o processo é virtualmente infinito) fica sempre aquela vaga sensação de tempo perdido  que, alíás, nos acompanhou envio após envio. Pensando bem, conhecemos quantas pessoas que tenham conseguido emprego por este meio?

Pois. Eu também não me lembro de nenhuma.

Uma nota, ainda, para as respostas. Não havendo um e-mail específico para o envio de candidaturas, uma em cada cinquenta tentativas merece uma palavrinha de cortesia vinda do outro lado. Havendo esse e-mail, ou um formulário, temos o prazer de receber aquela resposta automática que todos conhecemos tão bem: algo que começa por "agradecemos o interesse manifestado" (ou uma das restantes variações) e termina com algo semelhante a "o seu currículo ficará registado na nossa base de dados e entraremos em contacto caso surja alguma oportunidade de recrutamento compatível com o seu perfil".

Nunca surge, claro.

Porque é que insistimos? Não sei. Talvez porque seguir todos os caminhos seja uma forma de sossegarmos a nossa consciência.

E, por outro lado, há dias em que temos de nos convencer a nós próprios de que estamos a fazer tudo. De que não estamos parados. Porque, por mais que não o estejamos, às vezes sentimos que nunca fazemos o suficiente.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e quatro.

Rápida, agradável e útil.


Eis o resumo da minha apresentação quinzenal de hoje.

Parece impossível, eu sei. Mas o impensável aconteceu esta manhã.

Rápida porque, imagine-se, ainda não tinha tirado a senha da máquina (não tinha mesmo!) e já estava a ser chamada para a sala onde é feito o atendimento. Inédito. Até demorei um bocadinho mais a entrar, talvez por culpa de uma certa comoção provocada por tão inesperado fenómeno.

Agradável porque fui atendida por uma senhora simpática, atenciosa, educada, sorridente, comunicativa. Todas aquelas características extremamente comuns em qualquer estaminé de atendimento a desempregados, como se sabe.

Útil porque a dita senhora viu aquilo que eu nunca veria: tenho um mês para renovar o meu Cartão de Cidadão. E ainda me explicou que, se eu o deixasse expirar, seria impossível apresentar-me ali (na junta de freguesia); nessa circunstância teria de o fazer no centro de emprego. Não é que tal mudança de rota fosse grande transtorno para mim, mas gosto muito de respeitar prazos (de renovações de documentos, de pagamento de contas ou de validade de iogurtes). Além disso, imagino que será com certeza preferível evitar qualquer tipo de alterações, ainda que administrativas, que envolvam o IEFP.

As apresentações quinzenais deviam ser sempre assim. Por uma vez, o meu passeiozinho até à junta não foi, de todo, uma perda de tempo.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e três.

Pedimos desculpa por esta interrupção.


O blogue segue dentro de vinte e quatro horas.

(Por agora, repouso, medicamentos e chá quente.)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e dois.

Projectos e promessas e resoluções e objectivos.


"Assim que voltar a trabalhar, o meu primeiro ordenado será para [algo-importante-a-determinado-nível-e-que-por-algum-motivo-andamos-a-adiar-há-demasiado-tempo]."

Ai, os planos. Ai, as ideias. Ai, o futuro. Ai, que bonito que será o mundo quando voltarmos a ter dinheirinho ao fim do mês.

É isso. Da próxima vez é que vai ser. O primeiro ordenado da nova série (ou a primeira série de ordenados, consoante o nível de exigência financeira) vai servir para pôr determinado assunto em dia. Para resolver um problema que tardamos em resolver. Para fazer algo que já prometemos a nós próprios ou a alguém há muito tempo.

Enquanto temos trabalho e ordenado, os dias vão correndo e os gastos são feitos num equilíbrio por vezes complexo entre o possível e o necessário. Mas, visto à distância criada pela falta de emprego, o mundo parece diferente, como se as possibilidades fossem bem maiores do que aquilo que pareciam ser em tempos mas a inércia ou a falta de imaginação nos tivessem impedido de as aproveitar. Quando temos um ordenado, fazemos todo o tipo de malabarismos para o esticar; quando não temos, há mil e um projectos que a nossa vontade nos garante que poremos em prática mal recebamos o próximo.

Nós, os desempregados, não sonhamos só com um novo emprego: sonhamos ("sonhar" é o verbo adequado) com um novo ordenado. Vemos nele tantas possibilidades como as que vê um jovenzinho que vai trabalhar pela primeira vez. A palavra "ordenado" parece equivaler a "solução de todos os problemas". É só ideias boas e bonitas para o destino que terá. E o facto de já se ter tido tal coisa na vida deixa-nos pouco mais sensíveis à realidade do que um estreante nestas lides.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e um.

Mais uma vez, os anúncios de emprego.


Há os anúncios de emprego coerentes. Os exagerados. Os absurdos. Os razoáveis. Os incompreensíveis. Os ridículos. Os mal escritos. Os ofensivos. Os curiosos.

E depois há os outros. Aqueles que partem de empregadores que, aparentemente, não sabem bem o que querem. Querem tudo. Ou qualquer coisa. Ou algo mais ou menos assim-assim, dependendo de infinitas circunstâncias e possibilidades consoante o dia seja de sol ou de chuva. A descrição daquilo que se pretende é longa mas vaga. Vazia, melhor dizendo. É uma não-descrição, no fundo, porque ali cabe tudo  ou nada, conforme o ponto de vista.

O que não falta por essa internet fora são guias práticos para criar currículos eficazes, e todos insistem, naturalmente, na importância de evitar os clichés. Ainda assim, quando se consultam anúncios de emprego percebe-se que, afinal, muitas das empresas querem isso mesmo: lugares-comuns. Ou então não querem, só que, visto que procuram algo mas não sabem exactamente o quê, optam por um anúncio à base de frases feitas. Pedem alguém "dinâmico, proactivo e polivalente", com "excelentes capacidades de relacionamento interpessoal, de trabalho em equipa e de gestão de tempo", que seja "organizado, responsável e perfeccionista", que possua um "bom ritmo de aprendizagem", que se sinta "preparado para trabalhar sob pressão" e que domine "as ferramentas MS Office". Em troca, oferece-se outra "chapa cinco": a inevitável "integração numa equipa jovem e dinâmica", a bendita "formação contínua", o habitual "excelente ambiente de trabalho", a incontornável "possibilidade de crescimento na carreira", e, finalmente, a cereja no topo do bolo: a "remuneração compatível com a função e a experiência demonstrada".

Bem espremidinho, bem espremidinho... Nada, aqui.

Preencher aqueles intermináveis campos do currículo destinados às competências pode ser uma pequena tortura quando insistimos em inovar, em ser diferentes, em mostrar aquilo que nos diferencia; mas, bem vistas as coisas, tanto esforço imaginativo pode nem sempre ser assim tão boa ideia. Ou, pelo menos, se calhar vale a pena ter um "currículo-chavão" pronto a enviar nestas alturas. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Dia quarenta.

A minha atribulada relação com a generosidade.


Suponho que este assunto não provoque a mesma reacção em toda a gente. Aliás, seguramente não provoca: há com certeza os que são capazes de ver isto pela perspectiva útil, prática, até conveniente.

Eu não consigo ceder a certas coisas. Por mais que valorize a gentileza (e valorizo), por mais que a nobreza do gesto me sensibilize (e sensibiliza), por mais que compreenda a atitude (que eu própria tomaria sem hesitar se o caso fosse o inverso), há ajudas que sou incapaz de aceitar. Porque envolvem muitos custos, porque resultam de opções minhas, por vergonha, por princípio. Obviamente, há pessoas e pessoas. E, acima de tudo, há ajudas e ajudas: não estou a falar de um lanche, de um bilhete de cinema ou de presentes propriamente ditos. Estou a falar... do resto.

A minha vontade, agora, é usar aquele lugar-comum que costumamos associar a outros contextos: "não és tu, sou eu". Gosto de contar com o que tenho. Apenas e só. A culpa começou por ser dos moldes em que me encaixaram desde pequenina e hoje em dia é também minha. Faço contas à vida consoante as possibilidades que tenho. Digo "sim" àquilo a que posso dizer sim e "não" quando não há alternativa ou quando o "sim" me parece possível mas imprudente tendo em conta as circunstâncias. (E também respondo "não" quando tenho outros planos. Ou quando não me apetece fazer determinada coisa. Quem diz a verdade não merece castigo...)

Escrevo sobre isto porque, mesmo que tudo não passe de um equívoco e que a minha recusa não se deva propriamente ao ar em excesso na minha carteira, estando eu desempregada a associação habitual é essa. E muitas vezes nem vale a pena explicar que a questão não está no dinheiro, porque quem ouve acha que isso é apenas uma desculpa.

A prova de que vivo rodeada de gente boa e generosa está na frequência com que surge, após o meu "não", um "mas eu ajudo-te", um "mas pago eu", um "mas eu compro". E em certos casos essa disponibilidade é de tal forma sincera que se torna francamente comovedora.

Eu é que não sei lidar com ela. Nem tão-pouco aceitá-la.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Dia trinta e nove.

Dos pequenos privilégios de uma vida sem emprego.


Vendo as coisas pelo lado positivo, estar doente e desempregado é um luxo. É ter tempo para ir ao médico. É poder aproveitar a primeira vaga na agenda do "sotôr", porque, assim como assim, por mais que se tenha para fazer lá se descobre maneira de levar a sério a frase "saúde acima de tudo".

Estar doente e desempregado é uma forma de a vida nos dar licença para que nos queixemos das dores e para que repousemos até elas passarem (mesmo que não sejamos queixinhas e que achemos que o repouso é só para os fracotes). É tomar os remédios à hora certa, é seguir à risca prescrições e conselhos, é ter os devidos cuidados.

Curiosamente, estar doente e desempregado também é perder o norte a todo o tal lado positivo no exacto momento em que, na farmácia, rejubilando por ver a cura a caminho, se descobre que três insignificantes caixinhas de comprimidos custam para cima de trinta euros.

Às vezes o meu copo meio cheio entorna.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Dia trinta e oito.

A minha vida dava uma "quase-emissão".


[Nota prévia: obrigada por tudo, Mariana!]

Hoje é o Dia Mundial da Rádio. Por isso, mesmo estando eu afastada dos estúdios, para mim é uma data especial. Tem aquela doçura triste dos dias que nos deixam nostálgicos. Sou pouco dada a efemérides, e por si só não me parece que equivalham a mudanças de estado de espírito; mas nestas alturas deparamo-nos sempre, ainda que sem querer, com uma série de pormenores e de recordações que mexem connosco. Facebook e outros quejandos deixam-nos facilmente ali entre o sorriso tolo e a lágrima atrevida. E a verdade é que sinto falta da rádio e de muito daquilo que ela envolve. E sinto falta de me envolver nela, também. Hoje, é como se sentisse isso um pouco mais.

Ainda assim, ontem estava especialmente contente e entusiasmada, como sabem, porque, a propósito desta data, ia falar de rádio no estúdio onde para mim tudo começou. Ia voltar a um sítio ao qual gosto sempre de regressar e que me traz tantas e tão boas recordações. E ia matar um bocadinho da saudade que tenho do éter no dia que é dele mais do que qualquer outro.

Parecia perfeito. Tinha tudo para o ser.

E foi então que fiquei doente.

Este mundo consegue ser tão retorcido que fui adoecer justamente no dia em que me ia reencontrar com o "bichinho". E logo naquele lugar. Foi dos piores finais que esta pequena história podia ter tido. Hoje ia ser uma desempregada genuinamente feliz, revivendo a paixão e defendendo um território que verei sempre como meu e que deixei de pisar apenas porque não me deram alternativa. Em vez disso, a rádio lá longe, como em qualquer outro dia. E Facebook e companhia relembrando-me, hoje com especial fervor, que não era aqui que queria estar.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Dia trinta e sete.

O primeiro estúdio. Amanhã.


Sempre trabalhei em rádio. (Caros potenciais empregadores que passem por aqui: sei fazer outras coisas, sim?) E amanhã é o Dia Mundial dela. O dia que a celebra, que a defende e que a recorda. O dia que é guardado para dar atenção especial ao passado, ao presente e ao futuro do éter; para pensar nos desafios, nos riscos e nas conquistas. Claro que, para nós, os do tal "bichinho" (a conversa parece fiada mas ele existe mesmo), dias dela são todos. Não importa o tempo que passe nem o que a vida traga. Mas, amanhã, a data é um bocadinho mais especial.

Há um ano, voltei à casa onde tirei o meu curso para contar a minha história de radialista jovem, empregada e feliz. Amanhã, farei o mesmo, só que agora o enredo é outro. A radialista continua cá; a paixão pela rádio, essa, nem se fala; já não há é emprego. Mas experiências, poucas ou muitas, há-as sempre. E há episódios para contar pela primeira vez ou mais uma vez. Há um "bichinho" que se pode defender, e um fascínio difícil de explicar mas que nunca nos abandona. E há também um elemento-chave: os pés na terra. Porque é tudo muito bonito, mas, na verdade, o outro lado também existe. Não se trata de querer matar sonhos  ainda bem que ninguém matou o meu; trata-se de tentar mostrar que a moeda tem duas faces. E que é isso mesmo que lhe confere uma magia mais plena.

Vou voltar ao "meu" primeiro estúdio. Àquele onde descobri por onde o futuro teria de passar. E à casa que, por tantos motivos, me mexe sempre com cabeça e coração.

Esta radialista desempregada que vos escreve estará aqui amanhã, a partir das 10h30. A matar o "bichinho". Ou a alimentá-lo, talvez.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Dia trinta e seis.

"E já pensou em ir embora do país?"


Este é um assunto que dá para muitos textos. Muitos. Acho que dá para tantos que até se conseguia fazer um blogue só sobre ele. Desde logo porque tal pergunta pode ser formulada de muitas formas, quer pelas palavras, quer pelo tom. E porque por trás dela podem estar infindáveis motivos, histórias, expectativas, posturas  sendo que tudo isso acaba por condicionar a forma como a pergunta se faz e até reacção que se tem perante a resposta que é ouvida. Por outro lado, quem responde também tem histórias, razões e objectivos, daí não haver duas respostas iguais (variando igualmente consoante a pergunta e o interlocutor). Tudo é (ou pode ser) muito diferente dependendo do contexto.

Hoje fico-me pela abordagem mais geral: quem não tem emprego cruza-se com esta questão muitas, muitas vezes, vinda um pouco de todo o lado, em certos momentos proferida até pelas vozes mais insuspeitas. Já todos nós (desempregados, mal-pagos ou apenas cansados) nos vimos frente-a-frente com alguém que nos faz esta pergunta como se ela fosse simples e que espera, como se isso pudesse acontecer, uma resposta dona da mesma simplicidade, que em meia dúzia de palavras explique algo que pode ser tão complexo. Geralmente, um "sim" ou um "não" não chegam; exige-se um "sim, e", um "não, porque", na melhor das hipóteses um "talvez, mas". Quem pergunta aguarda mais do que um monossílabo e quem responde não sabe se há-de optar por uma espécie de semi-silêncio ou pela explicação.

(E tudo isto porquê? Porque hoje a pergunta chegou. Outra vez. Desta feita, felizmente em tom meigo e  sem pedir justificações.)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Dia trinta e cinco.

E, ao trigésimo quinto dia, o impensável acontece:


o IEFP envia-me uma proposta de emprego.

E uma proposta boa. Digna, equilibrada, razoável.

E em Lisboa.

E na minha área.

Não se trata de um trabalho garantido, como é evidente. É apenas uma possibilidade. Mas, sendo uma vaga em comunicação por si só uma espécie de coisa do outro mundo, toda esta sintonia de detalhes torna o caso ainda mais assombroso.

Contando melhor a história, surgiu uma oferta em Lisboa para a actividade profissional designada "Outros Escritores, Jornalistas e Similares" (no IEFP faço parte desta turma, sendo por isso claramente uma "similar"). Olhando para a minha experiência, e para a de muita gente à minha volta, nunca vi tal fenómeno em quase seis anos de emprego-desemprego-emprego-desemprego.

Bom: certo é que a vaga existe, e, achando-me adequada para a preeencher, o centro de emprego contactou-me. O que chegou ao meu e-mail a meio da tarde de hoje foi um PDF levemente confuso a apresentar-me as características da oferta e a dar-me instruções algo turvas (mas perceptíveis  espero eu...) quanto à forma de proceder em seguida. E eu, claro, apressei-me a fazer o que ali me pediam (já se sabe que nestas circunstâncias temos de ser mesmo muito bem-comportados, caso contrário esperam-nos rápidas e cruéis represálias): enviei o meu currículo para quem de direito.

Agora... Bem, não sei. Por via das dúvidas, pedi que me confirmassem a recepção do e-mail. Não confirmaram. Imagino que, posto isto, das duas, uma: ou me chamam para uma entrevista, ou algo se perde a meio do processo e eu ainda tenho de ir ao centro de emprego explicar porque é que não respondi a uma oferta à qual, na verdade, fiz questão de responder.

Haja fé.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Dia trinta e quatro.

A escassez de oferta.


Há vários factores que dificultam muito a vida a quem quer manter a cabeça erguida quando não tem trabalho. Um deles é a falta de opções razoáveis.

Se há semanas em que aparecem várias ofertas de emprego entre o aceitável e o bom (algumas aparentemente tão perfeitinhas e tão adequadas e tão possíveis que nos deixam ansiosos), outras há em que não nos deparamos com uma, sequer.

Nos últimos dez dias não devo ter respondido com um mínimo de optimismo a mais do que dois ou três anúncios. E isto aconteceu por todos os motivos que vos possam ocorrer. Na maioria das vezes, não preencho de todo os requisitos pedidos. Noutros casos, propõem-se estágios (profissionais ou não remunerados). Depois há aquelas ofertas de que já aqui falei: "queremos o-melhor-colaborador-de-sempre, mas não pagamos nada porque a equipa é mesmo muito divertida". (Nota mental: um dia destes, dissertar aqui sobre o conceito de "colaborador".) Por fim, confesso que trabalhar algures entre São Brás de Alportel e Moscovo é uma opção que estou a tentar evitar a todo o custo.

Quando a escassez se instala, é claro que se procuram as vias alternativas mais do que em qualquer outra circunstância. Fala-se com a família, com os amigos, com colegas, com o antigo chefe do primo, com a colega do irmão, com o vizinho da avó. E enviam-se candidaturas espontâneas para todas as empresas que nos ocorrem. (Outra nota mental: escrever sobre candidaturas espontâneas.) Mas, por mais que espalhemos o nosso currículo pelos quatro cantos do (nosso) mundo, há semanas que parecem perdidas.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Dia trinta e três.

Uma condenação chamada "orçamento".


Boa parte das áreas profissionais dão-nos a possibilidade de fazer trabalhos pontuais. E em muitas das ofertas de emprego que surgem (na minha área, pelo menos) procura-se isso mesmo: alguém para um trabalho isolado.

É claro que me candidato frequentemente a estas vagas, mais não seja porque do outro lado pode estar mais uma porta aberta (para além da "pontual"). É raro receber respostas, e até compreendo o fenómeno. Imagino que as candidaturas a trabalhos deste género sejam sempre umas boas centenas: quer de quem trabalha realmente naquilo que se pede, quer de meio mundo que não o faz mas que tem (ou acha que tem) jeito para o assunto, quer até de gente que sabe perfeitamente que aquela não é a sua praia mas a quem "não custa tentar". No entanto, uma vez por outra (vá, uma vez a cada cinquenta tentativas) há alguém que repara na nossa resposta e que entra em contacto connosco (só porque, claro, não tem um único amigo, colega ou vizinho do irmão da cunhada da avó que consiga dar conta do assunto).

Pois bem: se no anúncio não se tiverem pedido propostas de valores aos candidatos, é aqui que qualquer pessoa que goste de ser condignamente remunerada pelo seu trabalho perde o comboio. Neste tipo de ofertas, o financiamento disponível nunca é revelado  a menos que tal coisa não exista, assumindo-se nesse caso logo de início que se procura trabalho gratuito. Caso seja um trabalho remunerado (em teoria), a ideia é que cada candidato, perante o trabalho pedido, faça o seu orçamento. E já se está mesmo a ver aonde é que isto vai dar, não é?

Em certas áreas, há tabelas "oficiais" que definem os valores a pagar pelos serviços. Tabelas fáceis de ler, de interpretar, e que cobrem todas ou quase todas as alternativas. Mas raramente alguém faz questão de as respeitar. Quando a conversa chega a tal ponto, quem solicita o trabalho informa-nos de que o dinheiro disponível é pouco e de que o pagamento terá de ser simbólico  isto se não chegar ao ponto de nos dizer, frontalmente, que hoje em dia pedir o valor de tabela é uma imbecilidade. Do lado de quem trabalha, faz-se um preço abaixo do tabelado para tentar a sorte. E, mesmo assim, há diferentes tipos de "abaixo", que são o fim da história para gente que luta por ser respeitada (como eu): se determinado trabalho deveria custar 60 euros, muitos candidatos vão pedir 30 por ele, e a maioria vai ficar-se pelos 15. E ainda hão-de aparecer lá pelo meio os que não pedem nada  porque estão a começar, porque precisam de "encher" o currículo, porque têm de ter trabalho feito para mostrar nas próximas candidaturas, porque gostam muito de trabalhar para aquecer.

O respeito próprio sempre me impediu de fazer descontos absurdos (mais ainda quando estão em causa trabalhos que até por tabela não são bem pagos). E o respeito pelos colegas, ou por outros candidatos, idem. Mas há quem não faça questão de lutar pela sua dignidade profissional. Cada um sabe de si, claro, mas certo é que, enquanto aqueles que beneficiam de uma tabela não a respeitarem, mais ninguém o fará. E ela nunca será seguida. E os pagamentos nunca serão justos. E para quem contrata haverá sempre espaço de sobra para trabalho feito de graça ou por valores simbólicos  indignos, leia-se.

E eis aqui, senhoras e senhores, o porquê de eu nunca ter conseguido fazer um trabalho pontual na vida.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Dia trinta e dois.

Sobre os lados bons.


Já o disse aqui, eu sei, mas apetece-me repetir: na minha cabeça há sempre um lado bom em tudo. Até pode parecer insignificante quando comparado com o resto, mas, nesse caso, o truque é deixar de comparar. O que é útil é útil. Ponto. Mesmo que o seja apenas por um momento. E há que admiti-lo e vivê-lo como tal.

Quando trabalhamos, às vezes é complicado encontrarmos tempo para tudo e para todos. (Não, isto não sou eu a dizer que trabalhar empata a vida.) E há coisas que precisamos de resolver e que acabamos por adiar, quando pode ser, ou das quais desistimos, quando não pode. (Não, isto não sou eu a dizer que estar desempregada desde o dia de Ano Novo foi uma sorte muito grande que se chegou aqui aos meus lados.) E, havendo pessoas que merecem tudo de nós, é comum o trabalho impedir-nos de lhes darmos esse "tudo". (Não, isto não sou eu a dizer que um emprego é sempre sinónimo de uma vida pessoal arruinada.)

Há questões de que só conseguimos tratar se tivermos uma tarde livre. É verdade que para tratar desta eu não precisava propriamente de todas as tardes desde a de dia 1 de Janeiro... Chegava-me uma por estes dias. Mas adiante. Na data em que os títulos dos posts deixam de fazer sentido num calendário, retomemos então a ideia-chave deste texto  o copo meio cheio: não tivesse eu a tarde livre e nunca teria tido tempo para ir quase de uma ponta à outra de Lisboa em busca de um presente para quem mais me aquece o coração. Dois autocarros para lá, outros dois para cá, quase uma tarde nisto (porque agora anoitece cedo), mas a caixinha está comigo.

A chuva poupou-me. Eu poupei os portes de envio.

E aposto que esta tarde livre ainda vai valer dois sorrisos.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Dia trinta e um.

Carta aberta a quem gosta muito da frase "mas são só X euros".


Queridas pessoas,

Quando o nosso rendimento, por força das circunstâncias, é escasso (ou nulo), o sol brilharia mais um pouco se nos poupassem a certos comentários e sugestões que habitualmente andam ali entre a ingenuidade e a falta de consciência. Isto não se passa só com os desempregados, mas é claro que eles são  nós somos  um alvo um tanto ou quanto melindroso (embora pareça que somos é campeões do mau feitio). E, como há sempre um amigo que nem dá pelo peso da carteira de tão leve que a traz, calha bem aprimorar um bocadinho o tacto para futuras conversas "monetárias" quando o encontrarem.

Amigos inocentes, seria realmente amoroso da vossa parte evitarem frases do género "mas o bilhete nem chega aos quarenta euros...". Nós sabemos que é um comentário bonzinho e que não há maldade no vosso coração, mas já nos basta o desgosto de perdermos o concerto da nossa vida. E, além disso, todo esse compadecimento deixa-nos com a "obrigação moral" de gastar o dinheiro  não por nós, não pelo concerto, mas para vos pouparmos a tal estado condoído.

Amigos bem-intencionados, não nos sugiram que façamos determinada compra porque "aquilo normalmente custa duzentos euros mas agora está a cem". É muita simpatia da vossa parte controlarem as promoções, mas invistam um pouco de toda essa dedicação no bom-senso. Qualquer sugestão que equivalha a gastar mais de dez euros vai provocar em nós uma certa irritação  e à vigésima oitava ideia brilhante que nos derem pode ser difícil disfarçá-la. Se nos obrigarem a ter de explicar que por A mais B a proposta não faz lá grande sentido, pior ainda.

Amigos que claramente não têm noção do mundo em que vivem, se há razões para desconfiarem de que a nossa conta é como um daqueles cobertores que para taparem os pés destapam a cabeça, por favor guardem bem guardadas num cantinho da vossa mente apreciações semelhantes a "não percebo porque é que não vens ao jantar; só fica a vinte euros por pessoa". Dependendo das circunstâncias, "só" e "vinte euros" nem sempre encaixam bem na mesma frase, por mais bizarra que a ideia vos pareça. E não estranhem o nosso ar depois de ouvirmos tal coisa: por mais que tentemos disfarçar, mais tarde ou mais cedo a indignação virá aí.

Os amigos desempregados e/ou pobrezinhos agradecem.

Atenciosamente,

Sofia
(A amiga desempregada e pobrezinha que às vezes
se cansa um bocadinho de comentários despropositados.)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Dia trinta.

Nova peregrinação à junta de freguesia.


E vinte minutos à espera sem ter uma única pessoa à frente. Vinte. É do domínio geral que se estamos desempregados não temos nada para fazer, e que assim sendo tanto nos faz estar ali dois minutos como duas horas. Apesar disso, tendo em conta que uma pessoa nem vai prevenida com um banquinho, alguma solidariedade seria bem-vinda. E o problema nem está só na espera: ficar vinte minutos de pé sendo a única na fila é um desafio à paciência, mas ver à minha frente três  três!  balcões sem ninguém durante todo esse tempo é uma experiência difícil de descrever. Ainda para mais sabendo eu (e sabendo os senhores dos balcões, também) que a apresentação quinzenal é caso que não leva nem dois minutos a resolver.

Enfim. Daqui a quinze dias será melhor.

Espero eu.

(Desta vez o documento para a próxima apresentação veio acompanhado de uma nota do IEFP que para mim é novidade. Chama-me a atenção para "algumas das ofertas de emprego actualmente disponíveis na (minha) área de interesse profissional". Estas "algumas", no meu caso, são só uma (champanhe, já!), mas que foi motivo suficiente para eu explorar com mais atenção o NetEmprego. É uma espécie de centro de emprego online; até nos defeitos são parecidos. Mas parece-me que vale a pena ir passando por lá.)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Dia vinte e nove.

Ficámos sem emprego.


Já aqui disse que, no início deste ano, não fui a única a sair da empresa onde trabalhava. E, quando fiquei sem emprego pela primeira vez, em 2010, passou-se o mesmo. Em ambas as circunstâncias, fomos muitos a sair. E, também em ambas, todos desempenhavam até aí tarefas semelhantes, e movidos pela mesma paixão.

Em contextos como estes, não aparecem duas reacções iguais e raramente as há parecidas (a menos que duas ou mais cabeças se unam para criar algo em conjunto). Habitualmente, cada um escolhe um caminho diferente, faz as suas opções, encontra as suas estratégias. De uma história construída em comum, e mais ou menos semelhante, nascem tantas quantas as pessoas que se separaram por força das circunstâncias. A estrada partilhou-se com uma intensidade que só quem fez a viagem pode compreender, mas a vida segue em frente e cada um agarra-a à sua maneira. Como quer ou como consegue.

Uns regressam à terra natal. Outros demoram-se, mas só até poderem partir. E outros teimam em ficar. Há os que insistem em lutar pela área que os apaixona e os que procuram outros caminhos, por desejo ou por obrigação. Há os que se perdem entre mil e um projectos e os que se sentem perdidos por não terem projecto nenhum. Há os que já voltaram à realidade e os que aparentemente ainda estão um pouco ausentes, aproveitando o tempo livre que de repente surgiu para organizarem cabeça, casa e vida. Alguns mantêm-se em contacto com toda a gente, enquanto outros preferem desaparecer quase sem deixar rasto. Há quem corte o mal pela raiz e quem se vá separando dele aos poucos; há quem só se sinta bem falando com os antigos colegas dia sim, dia sim e quem fique meses sem dar notícias mesmo que lhas peçam. Uns admitem que choram todos os dias, outros fazem-no mas não contam a ninguém, outros vivem sorridentes e outros só choram de vez em quando. Uns são ressentimento. Outros são condescendência.

Entre todas as diferenças, só há uma (espécie de) dor que todos levam e guardam: as saudades. Escondidas, intensas, assumidas, amargas, conformadas, adormecidas, envergonhadas, serenas  se todos são diferentes em tudo, como é que não o seríam na forma de sentir a ausência? Faltam pormenores, tarefas, lugares, pessoas, rotinas. Parte da vida, que era quase vida por si só, deixou de existir. É isso que todos levam.

É isso que nos torna iguais. Depois de nós e das nossas circunstâncias, esse espaço vazio é o resto da estrada que ainda partilhamos.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Dia vinte e oito.

A difícil relação com as expectativas.


O desemprego e as expectativas andam de mãos dadas. E aqui tanto entram as expectativas boas como as más: nos dias "sim" alimentamos uma fé um nadinha exagerada em certas possibilidades e nos dias "não" convencemo-nos de que até o mundo já deu o que tinha a dar, quanto mais o mercado laboral.

Mas hoje a minha ideia é falar das boas. Por um lado, quando não temos emprego consultamos com (mais) afinco tudo o que é oferta e anúncio, e por vezes aparecem vagas que nos fazem sonhar alto, muito alto. Por outro, como ficámos desempregados pode acontecer que de repente tal ocorrência soe a sinónimo de oportunidades ilimitadas e que nos dediquemos a tentar alcançar cada uma delas. Quando damos por nós deixámos que se instalassem mil e uma ideias na nossa cabeça, sejam projectos que queremos pôr em prática ou novas áreas que queremos explorar, e aí vamos nós, caminhando entre o provável entusiasmo e o possível sufoco.

Problema: se o desempregado se encontra nestas circunstâncias é porque já deixou subir um bocadinho a fasquia. Um bocadinho demais, leia-se. Não é que eu não seja uma acérrima defensora do sonho, do optimismo, da luta, do cair e levantar. Sou. E é precisamente por ser assim que sei que lidar com as expectativas não é tarefa fácil  primeiro porque em certas circunstâncias alimentá-las é mais forte do que eu (nem vale a pena lutar contra isso); depois, porque sei que, em cada cinquenta possibilidades, aparece uma que segue para o nível seguinte (aquele intermédio, entre o sonho e a realidade). É o velho princípio: quanto mais alto se sobe, maior é a queda. Aprender de umas vezes para as outras é que nada.

Mas não se pense que somos só nós, desempregados eternamente sonhadores e ingénuos, os culpados deste desfasamento "expectacional". Aquelas pessoas que nos entrevistam uma ou duas vezes para o nosso emprego de sonho e que nos fazem acreditar que somos mesmo os maiores não ajudam nada. E aquelas que trabalham numa empresa muito boa e que nos juram a pés juntos que há vagas e que dentro de uma semana (no máximo) estamos sentados na secretária lá ao lado também podiam fazer o favor de guardarem os devaneios só para elas. 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Dia vinte e sete.

"Mas tu não estás desempregada?"


Ai, o tempo livre dos desempregados. Aqui há uns dias passei por este assunto mas apetece-me voltar a ele. Queridas pessoas que (felizmente) trabalham: quando se fica sem emprego não se deixa de ter vida. Não ficamos parados, estáticos, sentadinhos a ver o mundo a passar. Bom, temos de abrir mão de uma série de coisas, é claro, acima de tudo porque o dinheiro não estica. Mas isso não significa que um desempregado seja uma pessoa com muito tempo livre  melhor, com tooodo o tempo livre. Continuamos a ter uma vida, tarefas, responsabilidades, gente à nossa volta. Às vezes até temos uma agenda (material ou simbólica) assim para o confusa, porque nos dedicamos com mais zelo a afazeres para os quais, quando trabalhamos, nem sempre temos a disponibilidade que gostaríamos de ter. Por isso, amigos trabalhadores, acreditem que, quando esboçam um programa e pretendem convidar-nos para fazer parte dele, é evidente que nós agradecemos muito, e que só não aceitamos o convite se não pudermos; a questão é que não podermos não é assim tão absurdo. Lá porque deixámos de ter patrão, horário, responsabilidades laborais e olheiras até ao queixo, não estamos sempre quietinhos num canto a ver a vida a acontecer.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Dia vinte e seis.

Permitam-me não estar deprimida. Pode ser?


Quando digo a alguém que fiquei sem emprego, as reacções dividem-se. Muitas são sensatas  mas nem todas.

Há quem tente consolar-me, julgando-me desconsolada ou talvez inconsolável; há quem insista no discurso dramático, por mais que eu fuja dele, e que não desista até que eu assuma que estou desfeita (às tantas lá me vencem pelo cansaço e eu acabo por acenar levemente com a cabeça e por articular um "pois" quase silencioso, só para não prolongar aquele episódio de pressão psicológica); e há quem aparentemente tenha decorado vários livros de auto-ajuda e me encha de palavrosos conselhos sobre como enfrentar o problema e superar a angústia, mas tudo isto com um ar tão apreensivo que só me apetece virar o jogo e ser eu a consolar o meu conselheiro. (Ainda há, claro, os que partem do princípio de que eu fiz de propósito e de que não gosto de trabalhar, mas desses já falei. Por alto, mas falei.)

Ficar desempregado é triste. Preocupante. Aflitivo, por vezes. Dramático, a partir de um certo ponto. E, quando para trás ficou algo de que gostávamos muito, tudo pode tornar-se ainda mais duro. Mas eu estou bem. Eu. Estou. Bem. Sim? Estou mesmo. Por sorte (e por engenho, talvez) tenho poucos dias maus (e só há uma pessoa perante quem os admito sem pestanejar). Não passo o tempo lavada em lágrimas, não me sinto desesperada nem perdi o norte. Há dias "menos bons", claro, mas que têm sempre sido salvos por mimos aconchegantes, palavras encorajadoras e bons sinais. Já as abordagens negativas e as conversas angustiadas não salvam nada nem ninguém  não fazem grande sentido quando estamos bem, e, quando estamos mal, o mais provável é que tenham o efeito contrário àquele que se pretendia.

Não me imponham a infelicidade, está bem? Não partam do princípio de que me sinto miserável. Fico-vos eternamente agradecida.