sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Dia quarenta e seis.

Sobre as rotinas.


Às vezes penso nas memórias e nas suposições que ficam quando algo muda ou alguém desaparece. O dia-a-dia de quem trabalha e anda de transportes públicos inclui ver as mesmas caras todas as manhãs. Na paragem, no autocarro, no caminho entre o autocarro e a porta (do trabalho ou de casa). Há quem não prime pela memória visual, mas esse não é de todo o meu caso e tudo isto leva-me a achar que alguém pode aperceber-se, só porque sim, de que desapareci. (Tal como eu me apereceberia da ausência de algunss pessoas, que mais não foram do que silenciosas companhias diárias de viagem ao longo de todos os trajectos que fiz.) Na minha cabeça, e noutras, de ideia em ideia é fácil chegar à mais óbvia: a rotina mudou. Talvez o horário, talvez o trabalho, talvez a morada. Talvez agora haja carro. Ou não haja emprego. (Ideias mais trágicas também podem ocorrer, mas vou deixá-las de fora.)

Hoje, no autocarro, cruzei-me com um motorista que há uns dois anos me levava, em muitas madrugadas, para o trabalho. (Bom, na verdade eu fazia metade do caminho com ele; a outra metade era feita à boleia com um amigo e é um amigo que bem merecia que o mundo acordasse e o visse; chama-se Diogo Batáguas e é um poço de talentos vários.) E a prova de que há quem não esqueça as caras com que se cruzou diariamente no passado está neste motorista. Quando me viu, sorriu, surpreendido, e perguntou-me o que era feito de mim. Sorri-lhe, disse duas ou três palavras de circunstância, agradeci a simpatia e fui sentar-me. Nada mais. Mas voltei a pensar em tudo isto: na forma como desconhecidos nos fixam, na forma como fixamos desconhecidos, e na forma como, sem querer e sem saber, temos sobre eles o mesmo efeito que eles têm sobre nós: a estranheza que fica, as perguntas que se fazem, a imagem que se guarda.

Mal sabe o senhor motorista que, desde que deixou de me levar naquelas madrugadas, eu já saí do emprego em que estava na altura, já estive noutro e entretanto também já fiquei sem ele.

As voltas que a vida dá entre o dia em que deixamos de andar de autocarro às seis da manhã e o dia em que reecontramos quem o conduzia a essa hora.

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