sexta-feira, 21 de março de 2014

Dia setenta e quatro.

Aquela altura em que a conversa chega ao ordenado.


Sim. Essa.

Quando até parece que a vida está a correr bem. O telefone toca e do outro lado eis alguém que viu o nosso currículo (o que, só por si, é quase o verdadeiro acontecimento desta história). Apresentações para cá, perguntas para lá, marca-se uma entrevista e achamos que é agora que tudo vai mudar. A vaga até é interessante, a função até é gira, o escritório até é perto, a empresa até é grande, o horário até é bom. O optimismo chega e instala-se logo. Por mais que não se queiram entusiasmos antes de tempo, já se vê ali quase ao alcance dos dedos um futuro belo e airoso. Chega o dia da entrevista e, mais calmos ou mais nervosos, aí vamos nós (após rezas, promessas, figas ou pedidos à avozinha que Deus tem). Tudo corre como planeado: chegamos cedo, a roupa assenta bem, a maquilhagem (momento menina) favorece-nos, não está calor nem frio. A senhora que nos recebe é simpática, a cadeira onde nos sentamos enquanto esperamos é confortável, a sala é bonita. Alguém nos chama  e é aí que o frenesim se instala ou desaparece por completo, conforme os casos. Entramos num gabinete acolhedor, bem decorado, e à nossa frente está a pessoa mais simpática e bem-disposta que alguma vez nos entrevistou. Conversa, brinca, interessa-se realmente por nós e vê-se perfeitamente que sabe do que fala. A entrevista corre bem. Sentimo-nos bons, competentes, brilhantes. Percebemos que acabámos de convencer quem temos à frente. Tudo lindo, perfeito, maravilhoso. Estamos plenamente confiantes em que a vaga será nossa  e de que o primeiro dia do próximo mês será também o primeiro do resto da nossa vida, num daqueles clichés habituais em quem se convence de que nada, a partir daquele instante, será como dantes.

"Quinhentos euros."

É aqui. É este o momento. Este. Acima de qualquer outro. Como somos muito bons e como a empresa precisa mesmo de alguém assim e como já se sabe que é um trabalho que parece feito para nós, a generosa chefia concede-nos quinhentos euros. A abordagem pode ter algumas nuances. Uns falam de trocos como se vivessem alheados do mundo, vendo ali uma fortuna; outros fazem-no em tom de quem lamenta, "mas agora é o que podemos pagar"; outros optam pela estratégia do "mas olhe que a partir daqui vai ser sempre a subir"; alguns são adeptos da técnica "mas é a fazer aquilo de que gosta, por isso..."; e também há os que vivem tão apaixonados por desafios que tentam partilhar a paixão connosco, garantindo-nos que, se mostrarmos que somos realmente bons, seremos recompensados por isso.

É claro que, depois daqueles "quinhentos euros", a nossa cabeça vai para muito longe e todo o discurso  que ainda prossegue parece de repente vago e sem sentido. Se formos pela paz, acenamos com a cabeça, balbuciamos qualquer coisa em jeito de circunstância, dizemos que sim, que vamos pensar, e pedimos a todos os santinhos que aquilo não demore muito, para podermos sair dali e chorar/praguejar/olhar para o vazio durante sete horas seguidas/comer porcarias (momento menina  parte dois).

É que ninguém merece. Por muitos motivos: talento, expectativas, necessidades, sonhos, e, acima de tudo, dignidade.

1 comentário:

  1. Mesmo! Como me identifiquei agora consigo, aliás como quase sempre ! :)

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